domingo, 3 de julho de 2016

Um grito quando o carro passa

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Por Germano Xavier


"Eu não tenho enredo de vida? sou inopinadamente fragmentária. 
Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. 
Que o fracasso me aniquile, quero a glória de cair."
(Clarice Lispector, em Água Viva)


estou tentando encontrar o meu caminho. o caminho parece sempre ser feito de bifurcações. bifurcações nos levam, nos erram. acertar é difícil. o erro é latente. já vivi grandes crises assim antes. crises nos potenciam a ser mais ou a ser menos. com o passar do tempo elas se tornam mais poderosas, tanto no nível de sofrimento quanto no nível de transformação. transformar-se é um caminho. longo. real. imaginário. qualquer observação mais aprofundada não valeria a pena se não provocasse tormentas antes da calmaria. hoje sou o mar. o mar me leva. suas águas imensas. não estou na cidade. estou no porto das minhas ilusões. um grito quando o carro passa abrindo a manhã. tarde e noite. alvorada voraz. minhas mãos fechadas. meus olhos densos. penso que estou melhor do que há um tempo, tempo em que me encontrava de fato estagnado. agora talvez eu esteja on the road. eu devia estar feliz. não apenas porque tomei atitudes perante minha vida, em prol de minha felicidade, mas porque estou me pondo em movimento. penso cada vez mais na importância do movimento. o movimento é o caminho. nem sempre ele é de ascensão. porém, às vezes, é preciso descer ao fundo do poço para encontrar a mola propulsora que nos ajudará a subir. obrigado, esperança, por não me abandonar na minha dura tarefa de existir e ser quem sou. obrigado, dor, por não me facilitar o empreendimento dos meus passos, fazendo-me autor de esforços constantes. obrigado, vida, por me abrir suas portas da percepção, mesmo nas escuridões avulsas. obrigado, angústia, por me fazer revelações diárias. obrigado, amor, por ser. obrigado, poesia, pela palavra interna e inteira. estou tentando desencontrar o meu caminho. o caminho parece sempre ser composto de retas, intermináveis. paralelas nos içam, nos direcionam. errar é fácil. o acerto é distante. viver grandes crises é preciso. crises nos delimitam a ser mais ou a ser menos. com o passar do tempo elas nos tornam mais fracos e fortes. afundar-se é um caminho. curto. ficcional. sanguíneo. psíquico. qualquer observação menos sutil não valeria a pena se não provocasse paz antes da ebulição. hoje sou o céu. o azul me recorta. suas nuvens macias. não estou na zona portuária de mim. estou no monte das minhas verdades. um grito quando o carro passa fechando a madrugada. tarde e noite e dia e tarde e noite e dia. alvorada morta. minhas mãos abertas, meus punhos cerrados. meus olhos densos emergem um verde rural de minha ancestralidade provinciana. penso que estou pior do que há um tempo, tempo em que me encontrava de fato em movimento. para onde eu ia? agora talvez eu esteja fora da estrada. eu devia estar triste. eu devia não estar. eu devia parar de pensar em estar. penso cada vez mais na importância do nada, do sossego. a inércia é o caminho. nem sempre ele é o das perdas. podemos vencer a qualquer instante. a guerra é contínua. porém, às vezes, é preciso subir ao topo da pirâmide invisível para de lá deixar rolar vertigem abaixo a roda mortal que inventamos cotidianamente.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/The-rain-10524459

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