quinta-feira, 21 de maio de 2015

Verossimilhança ou um lugar para a ficção

*
Por Germano Xavier


“Somos um planeta cego à deriva do cosmo,
A nave de nosso coração não aterrissa
Onde pulsa o frêmito da ternura.
Somos um sistema feito para isolar
Isolar isolar tudo quanto for de órbita de sonho
Isolar tudo quanto for galáxia de esperança.”
(Caio Junqueira Maciel)

O que é ficção? A pergunta é pertinente, pois, como podemos perceber ao menor esforço dado nesta direção, há múltiplos usos cabíveis para o termo, o que implica também na existência de vários significados para tal palavra. O que representa a ficção pode ser para um e pode não ser para outro. Um determinado sujeito, a depender de onde esteja ou tenha nascido, pode interpretar como sendo ficção um material que para outro, de origem diversa, não tem o mesmo entendimento. Esta é a pergunta que embasa e embala o livro de Ivete Lara Camargos Walty, da Coleção Primeiros Passos/Editora Brasiliense – li a segunda edição, de 1986.

A intenção aqui, talvez, não seja a de falar sobre ficção tal qual ela é pensada e/ou requerida nos circuitos ditos mais científicos, apesar de eu querer falar disso também. Gostaria, ainda mais, de abrir as portas da literatura para o fator verossimilhança. Falaremos sobre isto, debruçando-nos nas páginas do livro SOL E NÉVOA, da escritora Letícia Palmeira. 

A recente publicação impressa da escritora paraibana, paulista por natureza - ou vice-versa – e dona de já outros três livros, a de agora gestada pela Editora Penalux em 2015, encaixa-se no gênero romance. Num todo-olhar sobre a obra, percebemos de pronto não se tratar de um livro com grandes preocupações estilísticas ou com tendência à classificação de prima produção. Sem desmerecê-la, sob pena de eu estar sendo injusto para com a bonita simplicidade das linhas impressas, SOL E NÉVOA chama mais a atenção pela clareza entregue ao enredo do que qualquer outro aspecto. A narrativa é absolutamente honesta, isto é, há uma história que se desenlaça ao crepitar das folhas, ou seja, algo está sendo contado, uma história está contida ali, no corpo textual. 

Apesar de toda a clareza depreendida na obra, a autora não esclarece se o que se conta é realidade da ficção ou se é ficção da realidade. Daí a relevância em se transferir poder à verossimilhança. O que à primeira vista pode parecer intuitivamente verdadeiro e inato às palavras de quem diz - a escritora como produtora da voz primordial -, isto é, uma aparente realidade ou verdade provável, pode ser apenas mais um traço de se perder no jogo dos acontecimentos ali difundidos. 

O jogo labiríntico da trama em SOL E NÉVOA se dá entre as personagens Lívia e Bernardo. Todavia, como preza o constructo romanesco, outras personagens se inserem no engendrado dos cenários e oferece ao leitor uma curvatura de leitura razoavelmente complexa, bem tecida e de fluente versar. Fato é que entre a imagem e a ideia do que se lê na obra há um poço de mistério – um tanto que mensurável -, mas que encanta facilmente as lentes do leitor e que o impulsiona na sequência de seu ato de ler.

Abraçando a perspectiva de Platão acerca de suas interpretações de mundo, SOL E NÉVOA talvez se deixe pertencer não ao âmbito de um modelo (reino das ideias) nem à instância da cópia (o mundo em que vivemos), mas antes se encaixaria na ideia de simulacro (a cópia da cópia), uma porção de vida retratada, fotografada, sem a dimensão da realidade inata ou pura. E por ser, a estória, apenas uma representação de uma estória/história, logo se assombreia e se acinzenta, nublando-se em si mesma, o que num olhar deleuziano chamar-se-ia de reversão do platonismo. Outra vez, a verossimilhança brigando com a natureza daquilo que é ou não ficcional.

A impressão de verdade provocada no leitor é, pois, um ponto alto em SOL E NÉVOA, tamanho o alcance do conteúdo. Amor, distância, aproximações, família, doença, rumos, destinos: são estas as temáticas do primeiro texto de maior fôlego de Palmeira. Desvinculando o leitor das nuanças do princípio da realidade, a narrativa mergulha nos meandros do princípio do prazer, oferecendo-nos um sabor de criação com laboração minimamente esmerada.

Podendo ser, nos dizeres de Walty, saída ou entrada de libertação, denúncia ou meramente reduplicação do real instaurado, a ficção em SOL E NÉVOA resguarda uma atmosfera brandamente nublada, atraindo para si ingredientes já tradicionais ligados aos respeitáveis acontecimentos literários. Se se produziu um pequeno novo mito, ao que concerne o entendimento da criação por excelência, o livro mereceu ganhar forma. Caso não tenha tal valor, o que se dizer quando entre tantos crimes semelhantes? O leitor, certamente, saberá sagrar ou negar o destino de aurora – ou de limbo - do romance em questão.
 


 Capa de SOL E NÉVOA, de Letícia Palmeira.

* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/Enquanto-aquece-o-cha-49478669

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