sábado, 16 de maio de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte II)

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Viana, que bom receber a tua carta!

Supera mesmo o prazer de esperá-la (que já é incomensurável!); eu sou talvez da última da geração de pessoas que escreviam cartas e postais (na adolescência); era bom esperar uma carta por um amigo comum, quando os correios funcionavam mal ou eram completamente inoperantes, folhear o papel fino às riscas, ler nas entrelinhas, nas dobras do papel, nas rasuras e nas hesitações, mais do que o próprio conteúdo. Depois guardá-las, relê-las …e por fim rasgá-las, décadas mais tarde, quando nelas se esgotava a vida. Mas o nosso padrão de vida actual, o imediatismo dos prazeres e a urgência da comunicação, quantas vezes vazia de sentido, não se compadece com esses compassos de espera. Por isso me alegro tanto por estarmos a recuperar esse costume que parece rebeldia nos dias de hoje… 

Falando de ti, do que me dizes: gosto da definição de ficção e de criação da Ivete Walty. Somos criadores sim, dos nossos momentos, modelos e da nossa perspectiva. Autores da nossa maior criação, que é a nossa vida. “Nem só a realidade existe”, como dizes; (outro amigo poeta dizia-me ontem que “os sonhos são quase tudo o que temos”) – e eu tendo, sinceramente, a partilhar essa visão. Sem o tempo da alegria e do amor, da espontaneidade, seremos só pequenos robôs que se contentam em ser eficazes, eficientes e a sobreviver numa óptica materialista e funcional, despida de intenções e de subtileza. Diria que “estamos”, mas não “somos”…

(Evandro ainda nos vai surpreender um dia entrando de rompante pelas nossas cartas com a sua verdade, mostrando-nos em que frágeis alicerces terá ancorado a sua realidade ou em que sólidas fundações vai ficcionando a sua vida!).

Não me admira que gostes da chuva, esse arroubo humaniza-te, quase te fragiliza! Imagino-te correndo propositadamente sob grossas gotas, protegendo livros e computador desajeitadamente debaixo da roupa. Eu gosto de chuva, lá fora, de mansinho, para embalar o meu sono. Ou através da vidraça, nas fotos, ou aquela que brilha às vezes nos olhos das pessoas. Lembrei-me, a propósito, que José Tolentino de Mendonça, na sua deliciosa crónica Cabeça no Ar fala no seu amor pelas nuvens e na existência, pasme-se, da Associação Mundial de Apreciadores de Nuvens (Cloud Appreciation Society). Quem sabe se num futuro próximo te filias nessa organização ou crias outra do género…?

Mas deixa-me falar-te sobre a língua que estou a aprender (a mesma que me está a prender!). A língua e a cultura, coisas indissociáveis. Só um pudor quase infantil me impede de te alinhavar algumas expressões novas na minha bagagem…talvez na próxima carta me sinta mais segura. Para já, diz-me tu: que língua imaginas possível, criada entre antigos escravos e senhores de escravos? Consegues sonhar com algum som, vocábulo, intuir alguma lógica gramatical…é uma viagem alucinante percorrer estes caminhos tão próximos e simultaneamente tão distintos das nossas certezas quotidianas.

Falando de ficção, por aqui é sinónimo de tentar viver dignamente, segundo os padrões europeus. Não quero que este desabafo se confunda com insensibilidade ou alienação – não estou a falar de fome nem de subnutrição, nem de falta de acesso aos cuidados primários de saúde. Mas assiste-se actualmente por estes lados a uma pobreza que corrói e leva consigo a esperança, o que é mais grave. Que arrasta os sonhos dos mais jovens, a paz dos mais-velhos e inquina a criatividade colectiva. Precisamos de ser mais engenhosos, astutos e pacientes. Ágeis e dispostos à mudança. Parece que a adaptabilidade é uma das principais condicionantes da sobrevivência. Que seja, então. Falávamos da revolução dos cravos, de 25 de Abril de 1974, essa data que me encontrou já com nove anos, em Angola, e que precedeu as independências das ex-colónias portuguesas em África, em 1975. Foi o fim da ditadura e o começo de um novo período na história portuguesa, que guardo na memória com uma enorme ternura. Entretanto algumas das conquistas de Abril estão agora a ser perigosamente postas em causa. O futuro constrói-se com suor e jogo de cintura todos os dias…

Quanto às tuas últimas perguntas, as que formulaste e as que adivinho em ti, explico-te o que faço para me “fluidificar”. Acredites ou não, aqui vai: esta manhã, quando saía de casa, um senhor idoso ficou sem bateria no carro e estava aflitíssimo tentando encostar à berma…então eu fiz algo que não faço há mais de 30 anos e diverti-me como uma menina empurrando alegremente o carro, correndo e empurrando, durante uns 20 metros, até que aquela lata velha resolveu pegar e ainda pude ver o sorriso de satisfação do senhor acenando agradecido! Ah, e para completar o quadro, juntou-se a mim outra senhora que vinha no carro de trás; ela largou o seu carro e as duas juntas fomos ali deixando esvoaçar as nossas saias de meia-estação ao sabor do vento. Um momento incrível de fluidez, uma coisa de minutos que muda um dia inteiro. Achas que exagerámos? Por favor, não sejas tão severo a julgar-nos…

Agora faço uma pausa, com a suave certeza de que a conversa nos vai tornando cada vez mais cientes da alegria que há em nós. E como diria o meu amigo mexicano: ! Qué platicada tan rica!

Um beijinho atento e um abraço enorme.

Até breve,
Clara

Lisboa, 8 de Maio de 2015


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Clara!

Céu fechado aqui. Meio do ano a chegar e a água do mundo teimando em tocar o chão, mesmo cá-aqui, no agreste deste planeta de nome Pernambuco, nordeste brasileiro. Mundo hoje tão inorgânico, não?! Tudo em simulacro, virtualizado e virtualizante (onde os virtuoses?), paredes de espelhos onde não dá nem tempo para sermos quem no fundo somos em realidade real, futuro acionado por controles e ondas invisíveis... Você falando assim no começo e eu meus botões já desgastados, relembrando das cartas que fizeram parte de minha vida. Troquei muitas cartas também, com pessoas importantes em minha trajetória. Escrevia mais que recebia, decerto. Mal sabiam elas, as pessoas-cartas, da felicidade sentida em meu coração selvagem quando aquelas mágicas poções envelopadas aportavam na caixa de carteiro da casa onde eu morava, umas carregando até o cheiro dos(as) remetentes para perto da gente. Cartas escreveram amor em minha mente e todos os sentimentos possíveis na pele-casca. Havia prazer nisto. A tecnologia da escrita com toques de. Até se chegar ao momento de uni-las ao fogo ardente. A sensação em cinzas, o derrotismo, a ânsia por. Mundo novo em fuligem. E vejamos nós, adornando os dias com e em... CARTAS!

Eu-até, meio que encaminhado nessas trilhas escuras dos-sem-vida, fazendo movimentos até bem pouco tempo insuspeitados, sentindo-me acorrentado em grilhões invisíveis que atordoam os passos, conhecendo novas foz-mares e me desconhecendo mais também. Nem tudo é tão claro, Clara. Tantas coisas e eventos que nos empurram para bem longe de nossos desejos mais sagrados... tantos movimentos em vão, regressos, avanços falsos, acessos indevidos - quem na verdade faz o papel de impostor? E como estão raros os nossos momentos sublimes de vida! O que há para se fazer nesta direção e como mudar o que nos muda a todo instante? O que tanto nos impede de sermos felizes? Você tem alguma dica a me ofertar? Ou estaremos, todos, perdidos, sem ter a quem poder combater ou distante dos lemes, eu, você, o Evandro, o arrebol mundano inteiro?

A chuva nos amaina, tira a quentura que extravasa, que está em exagero dentro da gente. Nasci num território de clima bastante ameno, nas paragens diamantinas, ali-logo no centro geodésico baiano, meu estado natal: Bahia de Todos os Santos, dizem. Lembro que antes, quando eu bem pequeno, por lá fazia mais frio, chovia mais, tudo era demais verdinho. Hoje em dia nem tanto assim, sabe. O mundo anda virado até nisto, nossa mãe-natureza irada não perdoando ninguém. Tantas catástrofes e cruzes! Dizem que o frio faz das pessoas mais silenciosas, de pensar mais antes de falar, ajuda na concentração... deve, de certeza, ser verdade. 

E por falar em nuvens, fui hoje comprar dois livros numa livraria aqui perto, que fica dentro do shopping center Difusora (local onde ficava a extinta Rádio Difusora de Caruaru-PE), quando na saída dei de cara com uma mostra de fotografias produzidas por uma estudante de jornalismo paraibana. Ela, que é natural de uma cidade aqui perto, de nome Brejo da Madre de Deus, local onde é encenada a tradicional Paixão de Cristo na época da Páscoa e mundialmente conhecida, com sua máquina de gerar poesia instantânea se revelou uma grandiosa observadora dos céus. Fotografias muito bonitas, a grande parte retratando o ventre dos firmamentos, suas estrelas e seus travesseiros nuviosos. Saí de lá encantado. 

Depois, passe-me as coordenadas para que a filiação minha se dê junto à Cloud Appreciation Society, Clara! Interessa-me! Sou de nuvens e de gostar de viver no mundo da lua, assim como de gostar de coisas que, segundo alguns, não nos levará a lugar algum: alguém por acaso falou em literatura aí? Antes disso, tive a ideia de criar uma Igreja: A Igreja Literária de Todos os Dias. No lugar dos santos e santas, escritores e escritoras. Deus seria Jorge Luis Borges. O papa, talvez o Luiz Ruffato – sujeito-escritor mineiro que ando conhecendo-lendo nos de-agora, por incentivo-revelação de uma menina-equador que atende pelo nome de Carol Piva, conhecida sua também. Que tal? Como se tal ideia tivesse lógica... ligue não, Clara, é só uma brincadeira. A literatura não sobreviveria à noção quadrangular de templo-fiéis-obrigações-dogmas. 

Ah, a nossa língua! Nossas línguas dos outros também, posto nossas de-nós. Línguas do mundo, artefatos coletivos de aproximação e afastamento, matéria vivíssima, mutante, permeável, social, de interação, de amor, de suor e de nossas histórias comuns de viver e estar e ser. Todas-tão, Clara! Como deve estar sendo bom a você estas novas descobertas, Clara! Imagino quanta beleza, quanto sumo a ser bebido ainda nesta viagem. Eu não quero nem arriscar. Aguentarei firme até seu oportuno esclarecimento. Tenho lido tantas coisas sobre a nossa língua portuguesa, Clara, por aí nesses meus passeios acadêmico-mundanos... não saberia nem por onde começar de tanta boniteza que incorporei nos últimos meses. Línguas-amor! Vivas!

Aqui, Clara, a barra está pesada. Batata assando nas mãos de cada brasileiro honesto, que trabalha dignamente. Ondas de corrupção devastando tudo pela frente, impunidade alarmante, inversão de valores, violência, falta em quase todos os setores, educação mendigando. Aqui se paga pelo descaso, pela ganância de alguns, pela falta de vergonha na cara, e em muitos casos paga-se com a própria vida até. Revoltante. País belo e de fortunas incomensuráveis o Brasil, tão maltratado pelos governantes, tão sem-p(rumo), tão incerto. Brasil de esperanças, sempre. Nem sabemos direito se a ditadura aqui se foi por completo, porque é cada uma que a gente precisa engolir, só vendo. Você viu um pouco da questão das greves dos professores aqui, que sei. Imagine mais, fique à vontade, pois é possível este fabrico ideário. Em tocar nisto, interessa-me saber um tiquinho acerca da visão que vocês aí em Portugal possuem da gente, irmãos-quase-nem de colonização. Sei que é um questionar já batido e que não procede nos-muitos, mas há um quê de curiosidade se e como a mídia em geral nos transmite até a população. E vivas à Revolução dos Cravos! Vivas!

Tão gracioso o momento de fluidez apresentado por você, Clara. Queria estar de perto-pertinho para poder ver a cena ou ajudar ou as duas coisas ao mesmo tempo, só para fazer parte também desta alegria espontânea de bem. Não julgo, pois sei que é justamente assim que conseguimos estar em pé diante das atribulações do dia. É num evento mínimo que o máximo existe. Não adiantar fugir de tal engrenagem. O simples é o atalho mais perfeito para o belo. Por cá, o pneu de minha motocicleta furou. Com jeito, consegui chegar à borracharia. O sujeito do estabelecimento era uma figura. Construímos metáforas sobre pregos e câmaras de ar. Dia vencido.

Sendo assim, vou-me por cá-agora, mas não deixe de me explicar o significado da expressão "encostar à berma", okay?

Sigamos, entre mares e marés.

De teu amigo, 
num Pernambuco de Holanda para o coração querido das esperas, 
em 16 de maio de 2015.

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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

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