sábado, 30 de novembro de 2013

Centelha




Por Germano Xavier


para Herberto Helder, in memoriam


ao som de Marquee Moon (Television)



para se preservar o materno
senso vital entre o corpo
e a existência, gelar a distância
que enlouquece lua e mar.

inventação amada a de criar
vazios, esta.

é um ventre minguado
a língua que não tece o símbolo
e a música das marés,
das fúrias.

minha calma marítima
flutua na estável atenção que cedo
ao elegante chicote das horas
hiperbólicas.

neste eixo,
fiel é a fala menstruada,
armadura  que entontece
todos os hálitos da Vida,

ente inconstante
entre o desejo e a morte.


Partido Jimbo 2


Por Germano Xavier

A primeira vez que ouvi o The Doors foi o fim.
No fundo, eu já tinha The End dentro de mim.
Aí veio a explosão. Blummmmmm!!! Light my fire, as pessoas são mesmo muito estranhas.
"Elas são muito mais estranhas do que eu", pensei.
Era algum dia que não sei se domingo ou quinta-feira.
Ray Manzarek, o Vox de minha alma reacendida em espantos. Nunca mais aquilo.
As pessoas são mesmo muito estranhas.
Chan, chan, chan, channnn, channnnnnnn, chan... O Vox de minha alma relampejando no céu!
"Chama o deus, chama o deus", pensei vociferar.
Ou queimem ele! Matem-no!
O animal nascido em mim, eu grávido. "Vou vomitar esse filho", suando.
John Densmore, a besta galopando ginetes sem adestração.
"Esqueça os cavalos, esqueça os cavalos...", quis.
O chão encharcado. Meu corpo charco, pandemônio.
No fim da década de 60 eu era apenas a sofreguidão de uma máscara sem préstimos.
Não saberia me cuidar.
O Vox de minh'alma me perfurando, a segunda vez viria.
Eu sumi.
Minha fuga não sei pra onde!
O vocal xamânico do cara cabeludo que se rasgava no palco. Engolia a dor dos outros...
Eu era o outro, ali no palco de baixo, no palco da vida.
O fumo e o bafo da revolta.
Jimbo, pai das portas.
Eu quase morto, eu. O acorde sombrio...
Janelas procurava para executar defenestrações. O mundo é estranho.
As pessoas são mesmo muito estranhas.
Robby Krieger, a máquina. O pulso maior, caso houvesse um.
Acordes metralhadoras, o cara morto.
"Finjo ser", pobreza de espírito.
Putos e putas, prostitutos e prostitutas! Vão se danar!
Eu quero o sol!
Eu quero o som!
Eu quero o teatro que sou ! Metralhadoras metralhando, ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ...
Um cara caído, grandeza. As portas da percepção... caríssimos!
Quem sou eu diante? Oca esfera. Tenho meu nada.
"Tenho meu nada que se completa", Riders on the Storm.
As pessoas...
É tudo estranho... Break on Through (To the Other Side)
A primeira vez que ouvi o The Doors foi o fim.
O fim de um fim. Recomeço.
Começo.
E quando a música acaba?

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Soneto de um desejo austral


Por Germano Xavier

Na Terra, a turba inteira inflama
em alvoroço. Raia o dia certo e raro.
No céu em chamas cai o anteparo
do dessilêncio: - Oh, olhar, você clama?

Se pudesse eu gozar dum tal desejo,
ansiaria estar em ansas ao astro colado,
para queimar-me em fogo conflagrado
e beijar um afago no claro sol que vejo.

Se em teu colo o aconchego deste
lhe servir de espelho, perceba a vida
que desce em brasa em mão caída.

E mediante o curto tempo e celeste
manto, aqueça-se, sim, em sestroso canto,
no alegre e eterno brilho do teu pranto.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Sombra seleta


Por Germano Xavier

embora de ir não diz partida...
a porta de onde saio é a porta
entortada de morte, vôo de morta
asa, para casa vou em mim caída?

e te deixar a bandeira hasteada ao meio
sem aquele vento lendário do passado
preste? agracede a quem a alma, o amado,
no se for disparado curva rosto boca seio?

vê que o que dista não afasta o ser tão
nem responde aos prêmios de adeus...
faz adormecer no invadir dos seus

atalhos, derrubada a selva e o sertão.
partida diz não ir de embora, em hora,
porque não fecho vida, o amor, por ora...

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sobre o chão


Por Germano Xavier

todo o quadro simula
o repouso
a multidão tamanha
tamanho imenso
paredão que me destoa
do resto o impulso que dou
é queda na hora
em que me saio distante
a gravura
que me é figura
arte e luz
fica no que marca
o ditame do meu eu
um pincel morto
meu realismo vivo
de dor
de dia

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Só há revisão caso se balde


Por Germano Xavier

um por acaso gostoso
de se sentir
me arrebata
um por acaso
de reminiscências
nuas
e de um sem-fim
me constroem uma
rouquidão
de compensados

domingo, 24 de novembro de 2013

Sim, os loucos?


Por Germano Xavier

Louca, a atriz
no palco encena.
Cabeças assistem,
dominadas.
Lá fora,
o poodle da madame,
que veste rosa,
urina no poste da esquina.
Depois, desfila
um fenomenal lacinho
de seda carmim.

sábado, 23 de novembro de 2013

Silenciosa crença


Acreditei,
como quem acredita na profundeza
das oceânicas águas, como quem tem
ainda nas veias o sangue vivo da juventude.

Acreditei,
como quem busca a felicidade eterna
em um sorriso infantil.

Acreditei,
como quem anseia o voo
das aves e sua total liberdade.

Acreditei no que você outrora disse
e hoje caminho ligeiro. Silenciosamente,
como quem procura e sente
as entranhas da vida no gestar simples
de um beijo.

Teus versos, decorei.
Tuas músicas, cantei.

Pulei aqui dentro de minha parcela mais particular e sentimental.
Dopei o meu corpo com suas rebeldias magistradas e leais.

Acreditei,
como quem chora de desgosto ao ver um irmão morrer
de fome,
de sede.

Acreditei,
vendo a luta e o suor diário de tuas mãos calosas
e ensanguentadas.
(E se forem léguas até desesperadas, conscientes e saborosas,
regadas à uniformidade e à pluralidade da disciplina?)

Acreditei,
como quem acredita em um mundo mais belo e justo.
Acreditei quando jovem numa reforma das verdades do ser humano.
Acreditei,
eu acreditei...

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Sobre olhos dançantes

Imagem: Google
Por Germano Xavier


Quem é Sophie Dahl? Não me pergunte. Isso realmente não importa. Nem mesmo saber quem eu sou eu sei, quiçá ela que é lá das bandas do muito longe. Só sei que li o livro dela e, confesso, ele é bem bonitinho. Estou falando do livro O HOMEM DOS OLHOS DANÇANTES. A narrativa conta a história de Pierre, uma moça que nem a gente, feita de paixão e de dúvidas. Pierre vive um amor, rodopia nele, fica leve, sorri, fica triste, fica com medo e depois é arrebatada novamente. Um livro alegre, triste e alegre no fim. Um continho de fadas mais que moderno. Livro, como disse, bonitinho, que vale nossos 30 minutos de leitura. Ilustrações de Annie Morris.

Semântico


Por Germano Xavier

Do meu verso,
que por ora deixo escapar,
espero nada senão a vida,
espero tudo senão o peso do fim.

Que ele me deixe sorrisos
no rosto
do meu passado que foi agora.
Que ele me plante amigos
eternos, se assim não for muito.
Que seja um tempo único
no tempo de cada um.
Que em ti me torne alimento
de sabor duradouro.
Que me seja lição diária
do que é emoção e espírito.
Que não me seja a superfície
de mim,
sempre e quase intransponível e dura.
Que ele me dance.
Que ele me luzes.
Que ele me passe à galope.
Que ele me águas.
Que ele me rios
- grandes, bem grandes!
Que ele me chaves.
Que ele me tintas.
Que ele me gritos.
Que ele me beijos.
Que ele me mundos.

E, por fim, do meu verso
básico e pouco gramático,
que ele me largue,
livre,
nestes jardins polissêmicos do Homem!

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Palapéia, palaméia


Por Germano Xavier

para o profº Hélio de Araújo,
que sabe a dor da palavra...


ao lado do livro está o acidente
da vida e a ignorância da dor

a palavra tem cem pés
para quem não tem pés
para quem não tem mãos
a palavra tem cem mãos

cem pés a palavra
centopéia
faz o homem andar

cem mãos a palavra
centoméia
mãos de voar

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sem saber


Por Germano Xavier

Se Drummond viveu meio verso
de um rascunho poético,
o que sobrou para mim?
Ainda há o que se viver,
sentir, ser...?
Se ele me consome e me consola,
eu perco o meu direito de viver?
Se você escreve poemas e romantiza,
se quer que eles sejam
divulgados no rádio,
se você quer falar comigo, se
sairá o nome do autor, é claro, se
a reunião da revista está marcada
para depois da palestra.
Se você me acha lindo, se você acha isso!,
se você está mesma falando com teus olhos
"que lindo! lindo! lindo!, timidamente lindo,
só para poucos perceberem sua beleza",
se tu finges gostar de poesia para o agrado
fácil, se vou tentar escrever um poema direcionado
à sua pessoa e se ele pode demorar, "tudo bem?".
Se como é bom vivo estar, não?
- Sempre, sempre. Já está na carteira.
Eu tentando a partir de agora lembrar-me
e aplicar esse teu escrito. Muito obrigada.
Se você já tudo disse e eu nada tenho,
só um punhado de inesquecimento, que faço
eu, que faço!, se você viveu
a vida em meu lugar?

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Sem saber se pau de fita ou se quadrilha


Por Germano Xavier

ele amava Drummond
que amava Assis
que amava Gregório
que odiava Camões
que amava o Rei

ele amava Shakespeare
que amava Platão
que amava Sócrates
que amava Sofhia
e que tomou cicuta

ele amava a menina
que amava o outro
que amava a outra
e assim o amor acabou
sem fazer cerimônias

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sem licença


Por Germano Xavier

Quando nasci, nem anjo torto
nem anjo esbelto trombeteiro
dos que vivem no breu...
ninguém disse nada.

Do céu desceu um mijo de Deus e
a rã no brejo veloz se escondeu. Tinha pra mais
de duas gentes perambulando por perto,
mas ninguém disse nada.

Vozes freadas, eu sem ouvido.
Chorei pelos cantos, em estribucho feroz.
Se nada dizem, faço meu papel.
Morrer pode ser tão ontem.
E a amargura? Calosidade tamanha, pensei:

Não corro atrás de imitos, vou
no verde que arvora (mesmo na cinzura
da regra fixa).

Quando nasci um diabo cor-de-tanajura,
desses que atiçam noite de roça, aconselhou:
sê disforme como essa lua...

domingo, 17 de novembro de 2013

Retalhos IV


Por Germano Xavier

XLVI

Improváveis tempos onde me desconfiguro.
Hora de desfaçatez imberbe:
cabedal instantâneo de desmarcas...


XLVII

Suportas o delírio da vida?
Suportas?
És forte assim, fantasma convulso?
Inda não sou bem homem,
bem velho...
Inda me perco entre sonhos e sonhos...
E há sonhos?
Para que serve a poesia?


XLVIII

Vai e volta,
o vento,
desgovernado...


XLIX

Sobreposto ao costado
dos teus olhos,
minha juvenília
farandolando multidões.


L

Bate tum-tum
no coração...
bate torto,
e o som coagula
um eco estrondoso de fim.


LI

O teu filho nasce.
O teu filho cresce.
O teu filho cresce
e só depois nasce.


LII

Confundimos a própria vida,
esta imagem desfocada que carregas
no colo,
em teu ventre,
maduro?


LIII

A travessia
em flutuar,
em fluido ar
d’água.

A instância.
O instante.

A magnética
dor do rio
verdanil

A dor dele
nos que passam

em só passar,
em só passar...

árida travessia.


LIV

Que aquele garoto correu
a importância dos diantes.
E sumiu como azul de tardes...


LX

Papas na língua,
cobra criada.
Salta da boca
a fera indomada.
E o outro, ingênuo,
espanta-se do nada.


LXI

Zé contou uma,
duas, três vezes. Contou
e não entendi.


LXII

Uma porção de treva escondida
clareia o meu eu-quarto nu.


LXIII

Poética:

tipo
ético
de
política.


LXIV

Depois de todo aquele drama,
a atriz coadjuvante
abre os braços em liberdade,
no grande retângulo de paisagens aprisionadas.


LXV

Ela se esconde,
cobre o rosto por detrás do muro
de cinza.

Nestas horas,
uma dinamite
faria vazar poesia.

sábado, 16 de novembro de 2013

Sem garoa, sem Salvador


Por Germano Xavier

Com alusões diretas ao poema "Garoa do meu São Paulo",
de Mário de Andrade.


minha cidade emprestada, sem pena
de mim, de ruas enladeiradas,
não parou quando eu quis.

minha cidade devastada,
construída em tributo aos mortos
(quase todos pretos de cor),
denuncia a torta forma, o tonto trato
pelo outro

- e por cadeia, não sou devasso?

também costura, minha cidade, os malditos
da Paulicéia. e nem sai dos olhos
esta garoa de cegar que não existe.
minha cidade sem mim é do menino invadido,
sem vento, sem distâncias de importâncias
- sem Londres, Mário! -, sem Salvador.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Selva de pedra


Por Germano Xavier

Por onde correu o rio,
hoje uma avenida de lágrimas
cobrindo o chão com asfalto
- enorme estrada de lástimas...

Eis aqui a formosura de uma bela árvore!
Amanhã, pobre e infeliz, um poste de desgraças,
iluminando os atos humanos
nas horas que não haveria de ter luz.

Ontem, uma mina de ouro.
Hoje, um túnel de esgoto
transbordando toda a sujeira
dos porcos homens em suas ratoeiras.

Dava pra se ver o horizonte,
o sol se pondo e a noite caindo.
Hoje, horríveis pontes,
o céu cinza, os pássaros chorando...

Onde se tinha cavalos,
hoje um amontoado de carros
dirigidos por indirigíveis,
guiados pela intolerância.

Ontem, vasta flora e fauna.
Sem tédio, a beleza das flores...
Hoje, usina de pragas.
Viadutos e prédios, abrigo das dores.

Muros altos, portões trancados,
luzes e alarmes; mundo de grades.
Tijolos sem vida, blocos de saudade...
apenas uma migalha de liberdade.

Salvador-BA, 30 de agosto de 2002.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Salivas sem casca


Por Germano Xavier

I

Exercito a palmilha.
Meus sapatos marrons secam suas carreiras no sol da janela. Meus sapatos são naves interestelares esperando a boa condição para o vôo.


II

A agulha: uma serpente de corpo gélido e quente na frieza das tramas, e quando transa com o corpo do outro corpo, não fere, mas busca na picada a alma irreal na matéria oculta. Brota do buraco de onde o furo nasce outra serpente comedora de vazios. Quando vê o outro lado, o lado de dentro dos foras, enxerga que já passou a perversão.


III

Jesus está num quadro, preso à parede da sala do meu apartamento. Não preciso ir a igrejas para vê-lo de perto, tocá-lo, percebê-lo. Jesus é um velho quadro preso à parede da sala do meu apartamento. Ele olha para baixo e tem a mão no peito. O quadro parece em sfumatto, mas não passa de um pintado papel. Pergunto-me se ali, por detrás da fina moldura que sustenta a tela, a pequena aranha tece a teia longe de qualquer perigo.


IV

eu comprei um cigarro para escrever literatura na padaria mas o pão fresco me incendiou a massa e aí a fumaça nublou



V

antes do espelho havia a roda
o mundo girou antes de nos olharmos
na esteira da grama na espreita da trama
do submarino amarelo

imagem cortada e atada nas cercas
salvei no ralo o fogo que descia
era um de nós dois o horizonte sem rumo
da roda no espelho do chão

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Se sou pedra


Por Germano Xavier

Alimentar, nos porões
humanos,
as brigas de valor
que irão confundir
todas as lutas.
É que eu escuto
do outro lado da rua
as ramas que irão
locar a paz...
Ninguém olha de cima
do decrépito prédio
o assombro das formigas!
Ninguém entende.
Ninguém entenderá
estes soluços brancos,
a música que reboa em sinos
a alma daqueles que, fortes,
caminham sobre o dorso dos ventos.
Beijar-te-ei em prováveis ardores,
marcarei o teu destino.
A loucura empresta suas garras
e ajuda a retorcer, inerte,
a bêbada sentinela cinza
da vida...

Num domingo triste de alegrias...

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Sapos, vacas, pássaros, leões e hienas


Por Germano Xavier

Havia um sapo.
O seu nome era Batráquio.
O seu coaxar era muito esquisito.
Muito esquisito mesmo!
Toda vez que ele coaxava, logo as vacas mugiam.
Logo os pássaros cantarolavam.
Logo os leões urravam.
E as hienas sorriam...

O coaxar de Batráquio se transformava em música.
E todos os bichos formavam uma orquestra.
Depois foi que deram um nome à orquestra regida por Batráquio:
"A Cooperativa da Voz".

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Roucas combinações


Por Germano Xavier

sobre o óbvio, amor não chega.
bate em disparada ao menor sinal
de existência. não combina

com o amor
um abraço sem choro,

um sorriso de estrelas,
um cão com dono,

um fogo morto.
inunda esta coisa de organizar

sofrimentos, invade a parede humana

no medo da perda,
soluça a sensação esquisita

de nem sempre continuar,

o amor, este deus sem paz.

domingo, 10 de novembro de 2013

Rotina de viagens


Por Germano Xavier

porque piscam luzes dentro de mim,
e eu sou apenas uma criança, arrebatada,
diante do mago brinquedo

sábado, 9 de novembro de 2013

Rios


Por Germano Xavier

assim, súbito
veio-me uma vontade
de chorar porque homens choram com pudor
choram sem pudor os homens choram
não sei motivos
há tempos dos meus - vários -
fantasmas

e chorei
e foi um choro de criança
inocente quase virginal das gotas que caíam fez-se chuva
da chuva nasceu um rio
lindo

quando as lágrimas cessaram
vi-me em torno de um silêncio
dilatado depois pouco um arco-íris coloriu
todo o horizonte
de mim

dali em diante
como que um ventre
rios de lágrimas surgiam
e meu choro infante já tinha a face com sal antes de mar

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Proclamação de fé


Por Germano Xavier

Quem és tu - ó, deus! -, Deus de Hegel?
Quem tu és, Homem de Feuerbach?
E por quem chamo nas horas doídas
da vida? Por quem hei de clamar?

Não sabe quem tem fé? Tu, druída?
E fé somente é domínio da vontade?
Por quem tanto morres, por que tanta
morte aos teus pés? Deus - ó, deus! -, por quê?

Na ranhura do vidro turvo passa uma luz
que persiste, uma espécie de matemática.
Nego e creio e me deixo, quebro-cabeça.

Aborto qual, Pascal, Kant ou Espinosa?
Abordo qual, Descartes, Voltaire, se em toda
resposta reside a pauta para mais mil perguntas?

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Rio de alma


Por Germano Xavier


Minha homenagem ao Velho Chico.

Francisco das luas, tu me escutas?
Ouça o som desse teu filho
a gritar o desespero
de quem tem medo do teu fim.

Bate o teu coração? Onde os teus mitos?
Fará de minhas dúvidas andorinhas a voar tua vastidão?

Daqui observo-te inteiro,
teu passar calmo,
tuas lágrimas cristalinas.

Francisco, clareia teus inúmeros oceanos.
Faz redobrar os teus sentidos
sobre os olhares da menina que passa,
que passa...

Venha, Francisco!
Corre o teu percurso que te faz singular
e alaga a cidade das almas.
Divida a beleza de tua volúpia,
pois sei que és justo.

Tenho vontade de içar vela em teu mundo
e ser mais uma criatura a te beber.
Onde te escondes, agora que te maculam?

Tuas feridas consomem o gosto do teu azul
e não mais te enxergam como um deus.

Velho, sabes de tua força!
Faz clarão nas vidas deste povo,
ensina o silêncio profícuo do teu transbordar.
Não seque o hino de tua garganta!

És pai de todos nós,
tão distante e tão perto.
E este destino tão incerto...

Choro águas nordestinas,
e meu choro é como a tristeza do sol.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Retrato de um susto


Por Germano Xavier

Quando acordei, uma criança
com as bochechas pintadas correu
em minha direção.
Contava os seus oito anos de idade,
devia assim ser.
Teria tido um pesadelo nesta noite?

A pequena sussurrou dois tragos de palavras:
-Deus, quem é você?

Depois daquilo não me ocorreu
outra atitude,
senão a de tomá-la pelos braços
e sair
como um cometa,
fumegante,
esbarrando mãos e pés em jarros antiquíssimos.

Pensei, “sou grande e bom”.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Retomada


Por Germano Xavier

ficaram vestígios
no rico
estranho
e utensílio
das palavras

lembraram um velho
ziguezague
da liberdade
e nunca
um conhecer-se

a fórmula de ser
sem medida
sem receita
de esquecer-se
do punhado humano

e da lida vontade
percebida
de lançar-se
às tentativas
infindas da vida

Autocracia versus Anarquia

*
Por Germano Xavier

A película A ONDA, que foi baseada no livro de mesma nomenclatura do escritor Todd Strasser, traz como personagem principal o professor Wenger, que não gosta da escala que a coordenação da instituição escolar a qual faz parte lhe impusera: ensinar uma disciplina sobre Autocracia - o desejo dele era o de ensinar a disciplina que trataria do tema Anarquia.

Com o comportamento que passa longe do modelo conservador já habitualmente relacionado à figura do profissional da área educacional, o professor Wenger, sem outra alternativa, encara a árdua tarefa e começa a lecionar a temática incutindo em seus jovens alunos os conceitos autárquicos de maneira a mais prática possível, ao invés de levar a cabo o conteúdo teórico respectivo.

No intento de provar aos seus alunos de que um novo regime ditatorial na Alemanha poderia ou pode acontecer a qualquer momento (e não só na Alemanha), o professor Wenger inicia sua prática de ensino diferenciada e logo começa a mexer profundamente na mentalidade de seu alunado, primeiramente somente através do poder da palavra "politizada". Com tal experimentação, Wenger conscientemente manipula toda a turma, que começa a segui-lo categoricamente.

Para tal domínio efetivo, cria-se saudações apropriadas, numa alusão direta a que era destinada a Adolf Hitler durante o regime nazista, a logística da sala de aula do mesmo modo é mudada, produz-se um símbolo e adesivos, ensaia-se uma marcha e define-se até um modo de se vestir peculiar aos membros d'A ONDA, nome escolhido para o grupo. Objetivo maior de tudo isso: fazer com que todos se sintam um só, um corpo único, homogêneo e puro em todas as instâncias.

Poucos são os alunos que divergem dos ideais pregados pela A ONDA. Os dissidentes, por sua vez, acabam mudando para a turma que discutia Anarquia. Porém, com o tempo e com a fama do grupo sendo disseminada por toda a cidade, muitos alunos da turma de Anarquia termina por mudar para a do professor Wenger.

Muito além da sala de aula, A ONDA começa a existir fora do ambiente escolar. Comportamentos humanos sofrem drásticas mutações, brigas em muitas ocasiões e o professor Wenger começa a sentir as consequências de sua até então ingênua ação docente. A alienação ideológica é logo denunciada por atitudes de vandalismo por parte de alguns integrantes d'A ONDA. A escola começa a chamar a atenção do professor Wenger, agora já um líder de incomensurável proporção - mesmo ele duvidando disso.

Nos momentos finais, já totalmente decidido a por um fim na curta vida d'A ONDA, o professor Wenger resolve fazer uma última assembleia com os membros do grupo a fim de romper com o que foi proposto durante as aulas. Mas logo ele percebe que não há mais possibilidade de controle diante de alguns alunos, que fatalmente encarnaram A ONDA em suas mentes como uma verdade absoluta e irrevogável, levando ao fim todas as possíveis consequências. É quando uma tragédia acontece.

Preso, Wenger observa a reação de pais e alunos ao fim do percurso, agora de dentro de uma viatura policial. A Onda ou Die Welle, filme de procedência alemã datado de 2008 e dirigido por Dennis Gansel, relata com singela maestria os perigos da disseminação desenfreada de um pensamento ideológico e nos faz pensar ainda mais sobre diversos temas urgentes à sociedade contemporânea.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O negro na cultura


Por Germano Xavier

A questão do negro, sua identidade e suas nuances, assim como a inserção de sua presença física e ideológica nos diversos sistemas culturais brasileiros já não é um assunto tão em voga assim como foi apresentado nas décadas anteriores no meio acadêmico e nos diversos setores de fomentação de debate. Muito se discutiu, muitas perguntas foram formuladas, muitas tentativas de resposta vieram à baila, mas o certo é que pouquíssima coisa mudou no tocante à participação do afro-descendente nos mais variados suportes midiáticos no Brasil (e por que não dizer no mundo?), a citar como exemplos a televisão e o cinema, tirando raríssimas exceções ainda imiscuídas num universo de marginalização.

No mais recente festival de cinema Maranhão na Tela, realizado na cidade de São Luís, o debate inaugural da mostra aconteceu em cima de três premissas básicas para o descompromisso para com esta problemática até agora discutida:

1) O imaginário social;
2) A marginalidade;
3) As condições de produção cultural.

Para os cineastas e estudiosos convidados, o que se vê no panorama atual é que o imaginário social de representação da vida do negro em sociedade já está tão maculado pelos media em geral que vai ser necessário muito esforço para a mudança na esfera-alicerce deste pensamento. Geralmente, todas as formas potenciais de geração e difusão de cultura impõem à sociedade a figura de um negro combalido por si mesmo, detentor de um espaço periférico onde é perigoso ao restante da população estar, um marginalismo de atitudes e espectros de caráter que funde um ser sem muitos préstimos, sem condições de alavancar outros e mais valorizados espaços dentro de seu próprio universo e do universo do todo.

Para os debatedores em questão, o ideal é que para que a mudança seja sentida na raiz da problemática, o negro não pode mais estar apenas como figurante no trabalho cultural, mas também deter o todo do saber que é produzido a cada filme que é lançado, a cada projeto de arte que é aprovado, a cada programa televisivo que é divulgado, entre tantos outros fatores. Porque é quem dá a condição de trabalho quem propicia que o mesmo trabalho seja manipulado no ordenamento a que se deseja, portanto as consequências adversas ou não de tal procedimento são já também providas de prevenção por quem as produz. Se o negro não participa de todas as etapas da criação, seja ela qual for, o negro também ficará sempre à mercê do pensamento do outro, que domina, que está no topo da cadeia, nunca sendo o produtor de si mesmo e nunca sendo alcançado pelos “olhos que tudo vêem” do modo mais natural como é dado em sua realidade.

É preciso “botar o negro pra fazer”, como citou Sabrina Rosa, roteirista e diretora do longa-metragem Vamos fazer um brinde, que se auto-intitulou “filhote do pensamento construído pelos estudiosos da relação negro-cinema nos últimos anos”. Começando a fazer o que os outros hoje e sempre fazem, o negro vai ser o próprio conteúdo, saberá o que significa o termo entretenimento, e todos os seus desenlaces, e vai também começar a saber a quem serve as produções que estão sendo realizadas na atualidade, e deixarão de ser “barrados por também terem o conhecimento do próprio racismo”,como bem disse a cineasta carioca. Talvez, só assim a cor da cultura neste país tão miscigenado e plural seja uma só: a da união.

domingo, 3 de novembro de 2013

Ressonância


Por Germano Xavier

Ao contemplar
José Davi Alfaros Siqueiros

Davi, da garganta de
tua criança brota
uma confusão de despojos.
Um cenho, dois cenhos.
Os dois repartidos, choram.
A miséria do aço na alma
fabrica as estâncias da dor.

A gigantesca pedra rola
montanha abaixo, dura.

Davi, tuas crianças?
Dói o teu vermelho rouco.
E eu que preciso de tantas mãos!
É preciso mãos?
Sem delas, o que fazer?
Não dá para cerzir com arame
um coração combusto?
A miséria, Davi?
A indigência, Davi, está aquém
do teu pranto, este mal
de alguns. Davi, o eco
das chamas, este fogo amargo
que queima, até quando?

sábado, 2 de novembro de 2013

Renque de apanho


Por Germano Xavier

Um anzol preso pelo silêncio
brotado do barulho grita um navio
desancorado. A casa fria marulhante
está gemendo, como a braçada involuntária
da dor força o respiro da vida. O mar é um
lamento reclinante. As ondas atiçam o fogo
invisível que o homem nada.
Morrer da espuma o sufoco, procurando
o contado ar nas bolhas que explodem
relutantes, ao surgir do sol, esta carícia fina...

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Relógios de solágua


Por Germano Xavier

Encarregar-se de se premer por entre
relógios de sol e água; deixar-se,
nuvioso, escorregar no vão do tempo,
na espreita de sempre e sempre
a procura.

O não gostar de quem

te esmera o oco, o surdo
e absurdo instante de si.

Se ser.
Clepsidra. Capadócio.
Climático o signo de se ser,
nauta: o nado. Eu que quis

te navegar em atóis
e bermudas, teu cetim
morno em queima...

O combusto ar de tua
polpa ainda verde, em mim
ainda o suco, por amadurecer.

Examinar-se, a te sentir o colo
de toda minha acastelada doença.