quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Caturrices para Greta Benitez






Por Germano Xavier

I

A jamanta atropelou
meu coração.
Sim, moça,
eu te namoro.
Sei trocar lâmpadas,
fazer poemas,
ler em voz...
Sou fã de radinhos de pilha.
Mas antes vejamos
o caso
desta ferida aberta.


II

Sou o que colho
o que olho.
Sou o que molho
o que colho.


III

Dentro da única
janela acesa
na cidade em madrugada,
a menina pensa
sobre a validade
das utopias.


IV

Depois que a noite
invadiu meu dia,
soube de Aladim.


V

Filho com síndrome de. Síndica fofoqueira. Quebranto de negra. Rasga-mortalha. Livro grosso. Puta doente. Desassalariados bebuns. Praia com chuva. Não muda nada. Ninguém ainda se atreve.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Nossos sádicos quase-amores


Por Germano Xavier

Porque eu também andei pensando coisas...


Quem a mim autoriza dizer que tenho amor? Quem assim sabe de mim a ponto de me projetar tais excedentes qualidades ou intempéries? Se sou realmente bonito e forte? Se pareço estar mais triste neste mês? Se não mereço a janta pobre que sobrevive em meu prato? São apenas perguntas, meu tão gentil amigo? Ou serão tão-somente as pérolas que nascem nas ostras do outro território, quase sempre o do inimigo, e que invadem as águas de lastro dos nossos navios de viver, e que não nos protegem das nossas tempestades nem nunca de nossos dissabores? Pois que pensei na tarde de hoje sobre o nosso sadismo diário, sobre nossas espécies de inveja, sobre nossas vesânicas afetações amorosas, que nos assassinam lentamente como em nossas fraquezas diárias. Estes sentimentos que se utilizam, em grande parte das vezes, de questionários para se manifestarem, nos causando sustos, surpresas, dores, nódoas na carne e no espírito. Eu, você, o primo da Neuma que morreu ano passado, a irmã da lavadeira, o sobrinho do diplomata, todos nós somos feitos daquilo que atualmente a ciência tem como o seu maior tesouro: a certeza de que tudo é incerto ou pode vir a ser. Tudo, meu tão gentil amigo, absolutamente tudo que neste mundo possa existir é porque é incerto- e não é necessário demonstração nenhuma de vida, mas apenas existir. E o início do desfecho para este raciocínio que persiste no erro eu simplesmente deixo para você. Sim, quero que você conclua o pensamento. Primeiro porque fui eu que resolvi escrever tais faculdades e, segundo, porque pela lógica o leitor aqui é você. Eu não tenho a intenção de concluir nada. Você, caso queira, pode realizar o que falta. Mas não faça se isso soar para você como uma obrigação, por favor. Acordei cedo hoje e até agora não tive um instante de certeza em mim. São tantas coisas que precisamos fazer, ser, ter, usar, manipular, tocar, sonhar, que facilmente apresento-me de mente trancada, pesado, pesadamente, o dia inteiro. É tudo tanto, que sempre perco a noção minha do antes e do depois. Às vezes, penso que toda a culpa pela minha própria desgraça é oriunda de mim mesmo, que não tenho ou ainda não encontrei o norte das coisas. Penso que sou mais um daqueles abomináveis seres tão fantasticamente obcecados pelo amor e todas as suas caras e taras, posto que me basta um leve assombro para que eu passe a desejar desfrutar de toda a complexidade ideológica de um cavaleiro antigo ou de um qualquer rude xerife de uma qualquer historieta western, passando por vampiros, sedutores, caixeiros-viajantes, cowboys e terminando por ir aos principados. E depois de todo o terremoto, penso e concluo - agora, sim - que somos incertos, tanto eu quanto você, feitos prioritariamente de incertezas e que nem por isso temos bons e estimados valores. Estando muito aquém de tudo ou muito além de nada, é sem dúvida o amor que funda toda essas minhas mitologias heróicas e olimpianas - e não seriam nossas? -, surgindo em todas as esferas de minha já por demais iniciada vida. Somos tão incertos que preferimos afirmar que temos amores, assim mesmo no plural. E não nos afeta a dor de uma mentira mal colocada quando profanamos aos quatro cantos do mundo que podemos ser medievais, modernos, bizantinos, trovadorescos, sádicos, humanistas e maquiavélicos ao mesmo tempo, porque nunca fomos de pensar que o amor pudesse marcar a superação dos conflitos sociais, familiares, entre homens e mulheres, apesar das religiões e das fés inventadas e já quase inumeráveis insistirem em tais possibilidades. E advogando em minha causa, porque estou mais para aquele sujeito que não pretende gastar sua idade idosa numa praça, jogando damas com tampilhas de refrigerante ao lado de velhos tão mais velhos que eu, e que mais pensa o amor sobre tudo e sobre todos não como uma fatalidade ou uma patologia, sempre desintegrado, espiritual, condenado à maldição pecadora quando do seu lado sexual, sempre imaginário e anuclear, mas como um suor fugido, que escapa porque é simplesmente liberto de quaisquer amarras. Sou um sujeito normal que acordou cedo hoje, apenas. Um cidadão jovem que não acredita no amor polarizado e universalizado de que mostram os jornais e a televisão. Um homem que pensa que ainda não possuimos a capacidade de decantar o amor, de fotografá-lo, filmá-lo, entrevistá-lo, falsificá-lo, desvendá-lo, saciá-lo... porque penso que o amor está além de ser uma construção livre e que objetiva uma realização pessoal. A liberdade no amor está em sua congênita contumácia. Por isso não podemos materializá-lo, jamais. O amor é necessário à vida coletiva, à uma comunidade, e sobrevivendo numa esfera individualista perde seu caráter doentio, de delírio e de escapismo, porque apequena-se e não mais consegue transgredir, violar, não fere e deixa de matar. O amor é um ser imenso e, portanto, assim deve se sentir, como um dominador e não um dominado. Penso tudo isso porque ainda sou daqueles seres que não conferem prioridade ao amor sintético, produzido sem o ingrediente do amor louco. A significação que dou a um beijo é toda uma imprensa sentimental e incerta, dentro de uma normalidade fundada em raiva e ódio. Meu atestado de loucura. A fantástica morte do "amor sintético” é um retorno ao amar loucamente. O "amor de aventura", que se comunica com o outro, que reconhece e é reconhecido, que se perde e se afirma perante um alter-ego que conjuga o Eros e a Psyché num movimento de profundo individualismo talvez fosse o atalho para o amor-comum, o amor-de-todos, o amor-que-abarca. Quiçá a mais bela sugestão de resposta à perguntas sobre as incontáveis incertezas nossas, sobre navios à deriva, sobre naufrágios misteriosos e mares revoltos, sobre como seguir e aguentar toda esta rotineira catástrofe sem sentir tanta dor, sem medir tanta morte pelo caminho, sem enxergar tanto inferno no apenas acinzentado azul do sol que nasce e morre, ininterruptamente, como a mim, como a nós...

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Bilhetes para destristezas



  Por Germano Xavier

I


meu bem,
o café está pronto.

na estante da sala,
abra a portinhola do centro...
deixei meu coração para quando voltar.



II


o teu jardim
palco de (in)versos
tem o tamanho das entregas
o colorido dos avanços

o teu jardim é um vermelho de mim



III


você encontra tudo isto
nas lacunas do não
nos vãos do sim
nos inexplicáveis poemas feitos sem raiz

você encontra o amor
e depois sai reconhecendo romãs



IV


a despeito das agruras,
invade o peito pelas vias
da memória
sempre esta sensação
de trem descarrilando



V


às avessas acordam
seus fios morenos

é tão intenso o precário
instante do primeiro espelho

a gente acorda,
sobressaltado,
assassinando o sonho

e descobre que o real é bem melhor
que as ilusões d’outros ladrilhos



VI



toma teu café,
espera um pouco,
venha ver a manhã...

amanhã, da janela,
não é o dia amargo,

mas a saudade
que não cessa (aromática)
dos teus quentes



VII


aprende uma coisa:

eu me comovo
como uma lâmpada mágica.
não abuse da sorte,
você só tem um pedido.

domingo, 28 de outubro de 2012

Regiões de sombra



 Por Germano Xavier

catalogar desmaneiras
deixar que a fumaça
saída
de tua boca
seja engolida pela luz no teto

abrir portais do caminhar
sobremaneira extraviar-se
deixar que tudo te deixe
para ser esquina

hoje dobradura
amanhã ser dobrável

Caio F., escritor, jardineiro e Quixote



 Por Germano Xavier

Caio Fernando Abreu, jardineiro, está dando risadas onde quer que esteja enquanto escrevo este texto. O sorriso dele é tímido, cínico, afetuoso, cinematográfico, teatral. Há em seus dentes um certo branco de ironia, tão natural quanto a vontade de viver que lhe corrói os ossos. Caio Fernando Abreu, jardineiro nascido em Passo de Guanxuma – sua Macondo, a la Gabo -, hoje Santiago do Boqueirão-RS, é daqueles raros exemplares humanos que sabem muito bem cuidar dos seus próprios espinhos, das suas próprias ervas daninhas, de suas respectivas arestas ou protuberâncias. Poucos jardineiros souberam sulcar a terra do seu jardim com tal zelo e devoção quanto ele, que afastava pacientemente as saúvas e eliminava todos os caramujos ruins das proximidades de seus girassóis, tão girantes e ensolarados.

Caio Fernando Abreu, o outsider, o escritor, o jornalista e o jardineiro perfilado pela colega de ofício uberabense Jeanne Callegari, é um menino que não segue a ordem natural das coisas, da vida. Um garoto que morre, nasce, cresce, morre novamente antes de viver, recresce, desmorre um pouco, trabalha, alegra-se, enfadonha-se, vive, morre, morre, vive, vive, ama, odeia, ama... Homem avesso, mulher mergulho, homossexual hetero. O Caio Fernando Abreu que a jornalista apresenta não é uma imagem definitiva, tampouco poderia almejar ser. Mas é um homem ao todo, fragmentado e unido num panorama maior: sua caminhada.

Com uma linguagem estritamente jornalística, sem nunca deixar de apaixonar o leitor pela história que está sendo narrada, o livro segue com poucas quebras cronológicas a sequência dos acontecimentos e fatos mais importantes da vida do escritor de Morangos Mofados e Os dragões não conhecem o paraíso. Sem grande esforço, somos levados a percorrer todas as glórias e todos os fracassos da curta-longa vida deste artista das letras que queria estar sempre no olho do furacão, envolvido com o seu tempo, principalmente usando o seu tempo até onde desse, até onde pudesse, mas que também era capaz de se esconder de tudo por dias a fio e cultivar a roseira do silêncio mais profundo.

É a perspectiva de um ser humano ao extremo, que muito amou, muito mesmo. Que conjugou o verbo-mor amar com muita facilidade, com muita dificuldade, misturando desapego e fome. A história de um magricela obeso e genial, de voz fina e grossa, de um profissional errante, de um viandante global desacostumado a acostumar-se com qualquer um ou qualquer coisa. Relato de um homem sem casa dono de todos os territórios, de um poeta do conto, de um cronista romântico e dramático, de um ator de si mesmo, assassino feliz de sua própria vida, autor que burilou sua morte com a foice mais cortante.

Não estou aqui para criticar o livro da Jeanne, falar mal ou bem de um excerto em específico, tentar desmistificar esta coisa misteriosa que o Caio tem por detrás de si. Muito longe de querer isso. Foi um livro onde me senti leitor, desde o princípio até o fim, em todos os sentidos possíveis condizentes à fabricação de significados. E acredito que isso já bastaria em matéria de explicação. Um livro que conseguiu me fazer chorar ininterruptamente a partir da página 171 – e olha que eu tinha 20 páginas ainda pela frente -, que muito me emocionou, muito, muito mesmo.

Dividido em seis partes, com prólogo e epílogo, oito páginas somente com fotografias, orelha escrita pelo poeta Fabrício Carpinejar e prefácio de José Castello, que inclusive tece sutis críticas com relação à suavidade dos recursos textuais utilizados na escrita de Callegari, 192 páginas do mais puro Caio F., o livro é certamente uma importante obra sobre este jardineiro das palavras.

Amigos, influências, viagens, idas e vindas, trabalhos, anos 70 e 80, drogas, serenidade, amores e amores, desilusões e alegrias, encontros e desencontros, de tudo um pouco é retratado. Sendo que no fundo de tudo isso, a presença sombria da AIDS pervaga o enredo de modo que paira um suspense que antes parecia interminável, até o dia em que Caio resolvera fazer o que chamava de O Teste e descobre-se portador do vírus – momento pelo qual Caio atravessa delirante, recompondo-se e resolvendo viver do modo mais “calmo” possível, aproveitando tudo como se fosse a última vez, a companhia dos amigos, dos pais e de suas plantas.

Caio Fernando Abreu – Inventário de um escritor irremediável é um livro que ocupa uma brecha, um vazio, e que abre portas para um maior desbravamento no mundo real e ficcional de um dos maiores escritores contemporâneos brasileiros, infelizmente mais estigmatizado que lido. Eu, que dele apenas li Morangos Mofados, Os dragões não conhecem o paraíso, Estranhos Estrangeiros, Ovelhas Negras e Pequenas Epifanias, terminei a leitura com uma quase insana vontade de singrar todo o oceano da literatura produzida por ele, o que certamente farei um dia.

Eu sei que ele está dando risadas agora por eu estar escrevendo isso, como também sei que está muito feliz porque ele sabe que não sou um fã de Caio Fernando Abreu, mas um amante, do jeito que ele sempre quis, que fôssemos amantes dele e não tietes. Caio está vivo como até hoje vive o jardim que ele deixou no Menino Deus, lá em Porto Alegre. Vivo como a alma deixada na Casa do Sol e na Casa da Lua, moradas da amiga e poeta Hilda Hilst, como as pegadas registradas em solos (estranhos?) estrangeiros, como a escrita de verdade no primeiro time de jornalistas da revista Veja – ainda no tempo em que era uma revista e não essa coisa que é hoje -, como tanto, com tantos...

“Você é Quixote. Você é Quixote”, Caio – dizia Clarice Lispector quando ao lado dele numa manhã de autógrafos.

Eu concordo piamente.

Esmurra este moinho de vento que está agora diante de ti, Caio! Quebra ele todo, vai! Você é Quixote. Você é Quixote...

sábado, 27 de outubro de 2012

Ministrando superfícies


Por Germano Xavier

"É um estranho desejo, desejar o poder e perder a liberdade."
Francis Bacon


Era assim a cor do dia, cor de laranja. Órion, Vênus e a lua quarto-minguante espocando uma luz tímida lá em cima no céu. Dia de dezembro. Noel chegando vermelho batendo esfomeado nas janelas, um pedaço de amor. Um naco apenas. Não queria tudo, apenas estudar a planície solta e fina e viva nos olhos de quem era. Entregou Calina, os livros. Ele respondeu silenciosamente com um aceno de cabeça confirmando o sair depois. Sentou-se. Um passeio e não há de ser nada demais. De onde estava, fitou o livro ainda abotoado em suas mãos. Pensou: "pernóstica linguagem". Como a filosofia grega estava na constituição do pensamento europeu ocidental e através de que elementos poder-se-ia afirmar com tamanha veemência - "aquela velha-gagá!" - que ela, essa desgraça filosófica, presente no modo de pensar de Calina ainda?, não aceitava. Esquivou-se. Como num golpe de traição, o vento empurrou uma folha baldia na direção dos seus olhos. Veio um choro instantâneo após o contato inoportuno. Duas ou três águas de lágrima como proteção. Calina não quis emudecer por dentro. Teria estudado uma vida inteira para desmascarar aquela professora ordinária. "A filosofia grega constitui um ponto de mutação no modo de pensar na Europa ocidental. Os gregos, utilizando-se de outros meios de esclarecimento para a explicação do mundo e de todo o seu arcabouço constitutivo, acabaram indo de forma contrária, ou parcialmente contrária, ao pensamento vigente naquela época", maturou. Raciocínio coevo com o do Alberto, melhor amigo. "Pernóstica linguagem", pensou novamente, alimentando uma ira de anos. "Emília, aquela idiota!". Não se davam bem. Calina fazia do seu conhecimento uma arma e um poço de divergências, porque tanto mais sabia mais perdia sorrisos. Suas macias comas omegadas se distanciavam demasiado de todo o encarapinhamento dos cabelos da Emília, talvez aí onde se resumia o início de todo esse mal-querer. "A filosofia grega, ao definir o ser humano como racional e dotado de uma alma universal, sua morada, recusa as explicações pré-estabelecidas por meio de narrativas - os mitos - ao passo que ordena uma nova fundamentação para a existência das coisas e, posteriormente, do homem", continuava. Para Calina, Emília tinha de perceber que toda essa fundamentação, antes baseada no "acredite se quiser", utilizando de sínteses e análises argumentativas e debatedoras, acabou por se tornar mais apta para a resolução da maioria dos questionamentos do homem europeu. Professora, cinquenta e quatro anos de idade, Emília denegria o olhar para a filosofia, já cansada de tanta guerra e pouco reconhecimento, não vendo nela um marco, um símbolo humano de vitória. Não acobertava a idéia de que o homem, ao usufruir do poder do julgamento, do debate, da análise, do resumo, de uma produção de ordem própria, de um desejo pela descoberta, deixaria transparecer a sua presença nos nossos dias e em nosso modo de pensar. Calina, vinte e sete, era pura inobservância nas aulas de Emília. Desrespeitava. Peitava. Desejava a morte de Emília. Assassinaria. Seria ela o punhal que esfacelaria órgãos e esquartejaria o corpo. Ulterior ao embate no recanto acadêmico, Calina fungava consigo mesmo um não-concordar com a voz que entrava em seus ouvidos. Era um desejo por poder dizer a verdade. Alicerçar uma verdade, fundá-la, na frente dela, dos colegas. Fazê-la passar a vergonha da ignorância adquirida com diplomas e mais e mais certificados de não sei quê. Adormecia e acordava e tinha sonhos de orgulho, Calina. Tinha para si a inconteste marca da sabedoria. Para ela. O pulso era sinal maior do saber. E isso ela possuía. Pulso. Chegaria um dia na frente de todo mundo e na frente de qualquer um que fosse e a desmascararia. "Passar vergonha, vexame". Emília precisava. Era infilosófica e tinha os cabelos encarapinhados. Um mito pelo que de ruim evolava. Partindo do pressuposto de que o mito é uma narrativa ou estória onde está contida a explicação da vida, da natureza das coisas e de si própria, operando e proporcionando o sentido e a essência da existência do homem na terra, Emília para Calina não passava de uma forma contrária. Uma fazedora de superfícies e de tons sem relevo. Ministradora das superfícies, enquanto ela, dia de dezembro, era o intelecto que acreditava que os filósofos da antiguidade mostraram as diretrizes para o caminhar do homem desmerecendo em grande parcela o mito, que crê no início de uma percepção do homem sobre si mesmo, formação de uma conscientização, na razão que se apodera do mito e passa a ser fonte mais influente na tentativa de explicar o surgimento do universo, ou seja, na existência. Para Calina, a tentativa de retratar a criação de tudo por meio do fantástico, da teogonia e da cosmogonia é revertida numa explicação das coisas pelas coisas e do homem pelo próprio homem, sendo que o pensamento diferencia-se do mito, pois opera obedecendo princípios, leis e ordens universais necessárias e que podem ser conhecidas pelo próprio pensamento. "Pernóstica linguagem", vociferou. Medava. Calina não era de ferro. Titubeava também, apesar. Era insuficiente sempre a menina. Não fincava pés no solo. Uma vez gritou que havia uma tentativa de formar um pensamento filosófico baseado numa ligação com a teologia, e pensar naquilo amolecia seus ossos quase sempre rijos. Afirmou que a igreja possui o poder espiritual e que é ela que regula os pensamentos subjetivos. Ergueu o dizer de que o homem pertence a Deus, sendo assim completamente dependente de Deus. Que a razão torna-se contestável e incerta. Suspeitando que o homem é a mais divina das criaturas, não por causa da razão, mas sim por causa de Deus, bradou que a filosofia obedecia e faz obedecer às palavras da fé - da sagrada escritura -, mostrando que o homem não está integrado ao cosmos e tampouco é portador de uma alma do mundo, mas de um elo da imensa cadeia que nos leva do cosmos a Deus. Que operamos também impondo regras e obrigações, limitando o homem e seus passos num mundo recheado de pecados e de castigos. E lembrou de quando o passado marca a urdidura da pele. O passado invadia o corpo de Calina sempre que pegava da voz para matar de uma vez a pobre da Emília, que não tinha rancor. Era o Deus que já havia permitido um dia. Dentro dela, ruminando, desgastando, corroendo. Era o Deus arrancando sua voz, voz-de-deus, voz-de-deusa, fazendo revolver toda a poeira perdida nos bailes de fúria, monopolizando o órgão rouco das catedrais da alma, penalizando com o silêncio infinito toda a maneira afetada de um não-saber-ouvir.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Leitura inspirada em brevidades



 Por Germano Xavier

que virão as espécies que habitam o negro
olhar a brevidade do teu descanso
e de tuas encomendas
quase sempre artifício e ardil
em teu repouso

quase sempre esta amargura silente
que interroga e que cala
que arde e que cala
que intrata e que cala

este claro tratado antigo de se percorrer
pedaços pequenos de uma abandonada liberdade
sem saber se entanto
seremos
ou se estamos

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Das possibilidades do amor


 Por Germano Xavier

"Nada que eu possa falar/
fala por tudo que eu sei/
sei que te amo, e quero/
ser feliz sem fim..."
(Beto Guedes e Ronaldo Bastos)


Tinha ele retornado de onde estivera. Contas e mais contas e mais contas a quitar. O sapato velho já com dois ou três buracos. Calça de brim, cor amendoada, sinal de forças amolecidas. A meia quase branca era percebida, cadarço rastejando, todo sujo. Era um homem quase feliz, com partes completamente calvas na cabeça, alguns fios brancos de contestável serventia e antigo aos seus 67 anos de idade. A vida lhe havia reservado uma porção de experiências que, por fim, depois de tudo e de todos, acabaram por fazê-lo sábio já desde moço, apesar de sua inquietude eterna. Fumava pito e pigarreava por isso. Um presente do pai. Na verdade, o pai nunca houvera lhe presenteado nada. É que quando o marido da senhora Justina morreu, o usado cachimbo foi parar nas mãos do único herdeiro. Aliás, herança composta por uma casinha rude de paredes amarelas, duas ou três mesas de madeira, tamboretes forrados com couro de novilha, um par de xícaras e uma leiteira enferrujada pelo desuso. Além, é claro, do pito, cujo fornilho era preenchido com tabaco de quinta categoria, geralmente encontrado nas barraquinhas de fumo de rolo quando nos dias de feira livre na pacata cidade onde penava sua sobrevivência.

O homem vivia e sobrevivia. Durante toda a sua existência, havia amado muito. Amou quando o amor era apenas uma ardente paixão adolescente, ou quando o amor operava em longas cartas transbordantes de emoção e júbilo e que, por vezes, nunca conseguiam chegar ao destino quisto. Amou quando o amor era o diário repleto de poemas cheios de lirismo e quando o amor era, simplesmente, um coração ferido e lastimoso, escondido a sete chaves dentro de um peito doído. Amou, também, quando o amor, remotamente ou já de perto, e como quem sabe, apresentava-se como uma paixão para toda uma vida, o que é de maior dificuldade de encontro. Amou cedo e amou tarde. Amou com pressa e pacientemente amou. Amou no tempo e amou destemperadamente. Amou sem paixão e apaixonadamente também amou. Amou sem amor e com amor. Porque talvez não fosse o amor um lugar de mesmices e, desse modo, não haveria explicações ou razões para o Gabo pôr tanta cólera nos tempos do amor. Todavia, não obstante o currículo invejável de tanto amar, o velho, em descanso bom de alpendre e crepúsculo, não hesitava em perguntar, e perguntar principalmente a si próprio, sobre o motivo do amor. “Ah, o amor... o que é mesmo o amor?” E ficava ali horas a fio, perdido e pitando e pigarreando, mais e mais...

Era mesmo um velho homem sábio, que já sem dúvida pousara os olhos em questões de certo e errado, ou sobre os corretos e mais profícuos modos de se perscrutar uma alma, ou ainda coisas de mentira ou de verdade, façanhas, desventuras, menos e mais, passado ou presente. Dizia sempre que o passado, como o próprio nome denuncia, já passou e não existe mais. Duvidou da primazia e inteligência democrática de Atenas, leu o cerco que fizeram perante Moby Dick, foi da milícia antifascista, perseguido, exilado, repatriado, et caetera e tal. Leu Rabelais e Joyce e disse “eles são exemplos de satíricos”. Concordou com Lévi-Strauss e pregou nas salas de arte e literatura que arte mesmo só aquela que comunica algo, e que os abstracionistas não tinham o que fazer fazendo aquilo que seria apenas o desejo de fazer. Compilou sonetos portugueses do século quinze. Leu teorias gerais e o escambau. Era, e não se sabe se continua sendo, carbonário, entidade colérica. Dizia que a humanidade era instituição doente, que mormente estava doente. E enquanto pitava, e enquanto a fumaça cinza se derramava no ar, desmanchando-se numa dança angustiante, defendia o pensamento nascido no dentro do peito, o de que o mundo e as pessoas estariam precisando de uma injeção fortíssima de sentimentalismo expresso, daquela de mais forte e voraz caimento. Lembrava horas e horas de antigos colegas e de conversas, como a que travou com um aluno seu no curso de filosofia. Citou exemplo de uma discussão com uma antiga namorada e foi narrando para o aluno que ouvia...

“Quem és tu para falar em sentimentalismo expresso?”

“Sei, devo confessar-te o meu silencioso manifesto. Porém, acredite, não é de hoje o meu vil galanteio!”

“Impudente! Cínico!”

“Calma, não quero brigar. Se me achas ator de uma desfaçatez minha, que me encarne e me apessoe. Não tenho eu a horrível intenção de magoá-la. Pobre de mim. Tenho, sim, uma quietude amplificada pela agudez de minhas ânsias mais desejosas.”

“Mas você me fala disso agora, depois que me despedaço... e é como se me ferisse a secas facadas. Logo, assim, desprezar-te-ei, por não mais me ater às tuas confianças.”

“Acerca disso, o Nélson diria: ”Poupai Ana Maria dos homens solitários, que por isso desejam mais...” Dessa maneira a ti me portaria, veraz em meus sentimentos sem voz, quase roucos, simples, de proporções colossais e extremamente humanas. Afloramentos que encontrariam nas palavras o veículo mais interessante para encontrar você.”

“Continuo a achar-te de um cinismo único. O queres comigo?”

“É o querer de ti, se em ti passo a mão nas formas de seguras resoluções. Acreditas tu, em tão ligeira avolumação?”

“Não. O amor é impossível quando de ligeiros golpes. O amor necessita de um tempo, de um asfalto. Destarte, em ti não hei de acreditar, e nem deveria.”

“Devo dizer-te da fluidez dos ventos deste mundo. O que é pode não ser mais, dependendo apenas do que se tem de referência. “Tudo flui”, Heráclito diria.”

(...)

Um homem velho, apesar da carne velha e sem tenacidade, possui coração que continua batendo, mesmo depois de maculado. O coração continua batendo, batendo, batendo... e batendo compassadamente se descompassava ao mínimo movimento das rosas. Havemos de considerar, antes de tudo, nossa humanidade. Afinal de contas, quem não é humano? E amar, para o homem, não era escândalo. Escândalo seria não desejar voar, feito um passarinho, livre, livre, livre ao cobiçar a liberdade na face das asas. E, mesmo sendo em horas impróprias, cantaria ele, sem vergonha de ser, na eloqüência das palavras, os amores que tinha e os que não tinha. “Onde o amor? Existe amor? Se ganha? Perde-se? O que tem amor? Para que amor? Doença? Cura? O que é amor?” Suspeito que saibas de alguma coisa, mas tenho a certeza que há o medo do mundo, dos olhos sempre abertos, dos falares das outras e dos outros. Há o medo de ser falena, e se o medo não existisse, talvez o velho jamais teria pensado em um dia voar, tomar o mundo como quem o transforma, como quem é capaz de tê-lo ao encontro de si próprio.

(...)

“Se tudo fosse tão fácil assim!”

“Mas é fácil, e há de ser, sempre, posto que “tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não possuído!” E é na sua totalidade e onipresença que construo as bases e os meus alicerces mais sinceros.”

“Estou começando a sentir nojo de você. Como podes, engenhar mentiras tão grotescas! Isso é uma afronta aos meus conceitos! Justo você, que tanto ofereci apreço... longe daqui!”

“Perdão. O amor é mesmo um ser que provoca incredulidade, tamanha sua força. O amor é dúvida. Quem sabe, o amor fique a te esperar na esquina da rua por onde passas, desavisada, todas as manhãs de todos os teus dias. Qual o talhe do Amor?”

“Por que agora?”

“Acho que sou um tipo descobridor dos sete mares, dos sete sóis, das sete luas... tenho a impressão de já ter escrito essas palavras. Não enxergo o amor em matéria lapidada no teu olhar, em teu seio tão frutífero, em tuas ancas de mulher. Vejo uma espera, uma agonia, um sofrer de menina-mulher disfarçado numa lepidez que é sua, e não recebido dele: o Amor. O amor em você é uma serra, ali, parada, imóvel, sem reação, alma doída por ser tão distante dos sentidos. E hoje o teu nome é desencanto.”

“Não tens o direito de dizer tão alto essas palavras! Você não me conhece!”

(...)

Talvez o velho não soubesse do amor. Assim sendo, viveria. Ou, talvez, e quanta tristeza!, o amor não o tivesse e aí, sim, seria morte. E na platéia, a olhar o féretro, com os dedos em riste e a mais borrachuda voz, surgiria o Camus para dizer que o homem é mesmo assim, com duas ou mais faces, “não consegue amar sem se amar”. E, mesmo morto, sobre o catafalco banhado com o brilho morto do ouro que só a morte empresta, em sua simplicidade e discrição, o velho calcar-se-ia em pensar no amor que teve para, só depois de lograr a hora do adeus, no mesmo arfante e embriagante desejo de dominar o amor, como dele ser vivo ser que se apaixonou na eterna magia dos tempos, considerar, sem medo e permanecido em êxtase, que amar é apenas uma conseqüência do amor.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Tu e os vermelhos



 Por Germano Xavier

você prefere os vermelhos
que descem firmando o céu
de tuas gentis chaminés

lacunares aberturas de se entrar
estrelas por toda a casa avisando
que dia de amanhã terá e será

de se cobrir frios
de se aninhar filhos
de se alimentar vagas

de se pintar rubis com a tinta dos olhos

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Germano no POETAS VIVOS


Os poemas "Rótulo", "Objeto a falha no que me atualizam resoluções" e "Umbilicus", de minha autoria, foram publicados no POETAS VIVOS. Tudo culpa de minha queridíssima companheira de versos, Daniela Delias. Para ler, clique no link supracitado. Sigamos, bucaneiros!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Círios apelam para rubras cores


Por Germano Xavier

haveria de ser se fosse o que não é
- nos tempos plenos de toda nossa história -
ou está sendo ou seria se houvesse de ir
seria para onde um no outro rumaria

quando
como onda de mar batida na crista do sol
tal guia

amaria de ver caso tudo fosse vela
e vento força gerada
- em braços unânimes -
sentiria ou simplesmente existiria
o que de tanto estar em falso
na saudade mais doída fabrica
em imagem

- de um mundo rubro melhor -
o afã por ver que tudo em ser poderia
num ter de ir para ver o que ser iria ter
se amar não fosse uma parede entre
o que se há e o que se é o que se queria

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Morrer-se


Por Germano Xavier

morre-se de apuros
morre-se de distância
morre-se de sonho
e de sul
morre-se de Beatles
morre-se de mar
morre-se de não-com
morre-se
de estocar vida
morre-se de compressão
morre-se de depressão
de queda e de pena
morre-se de nordeste
de psicologias
morre-se de sim
e morre-se de não

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O muco


 Por Germano Xavier

Parte IV

ou um ilhéu coroado em febre onde cabem todas as maravilhas


eu me perdoo por você ter ligado naquela hora tão indevida
e me deixado ao deus-dará dos sem-esperança
eu me perdoo por ter bebido até a brusca queda
e tombado na vala dos que se desesperam por quase nada
me perdoo por não ter beijado tua boca azul de tão branca
e ficado no alvoroço dos dentros vagos que nos perturbam
eu me perdoo por não ter sido fiel a você que tanto me disse amar
e que tanto amou comigo mesmo com a perna em gesso
eu me perdoo por ter escolhido você tão sem graça
e por ter sido você tão sem graça logo depois dela que era tão
eu me perdoo por não ter bebido em tua boca menina do cabelo vermelho
da capital eu me perdoo por ter e não ter tido você tão doada a mim
eu me perdoo por ter te sustentado num andaime sem segurança
essa coisa tão flutuante e por tanto tempo ter feito assim
eu me perdoo por ter te levado para ver aquele pôr-do-sol tão lindo
naquela tarde caída tão perfeita depois do suco que tomamos
eu me perdoo por cantar contigo na esquina quando a chuva resolveu cair
sobre nossos ombros quase nus de tudo
eu me perdoo por ter te aliciado até fazer com que você partisse para cima de mim
com aquelas garras de leoa indócil
eu me perdoo por ter dormido várias noites ao teu lado
e não ter acesso a feral chama dos meus pandemônios
eu me perdoo por você ter me abandonado na praça da cidade bonita
esperando você para um amor mais-que-eterno
eu me perdoo por ter dormido no chão sujo da rodoviária
olhando a lua íngreme abaular o firme céu em tormento
eu me perdoo por ter acendido o charuto dentro do carro em movimento
quando partimos em busca do chão desconhecido
eu me perdoo por tantas vezes ter comido teu sexo e na madrugada
ter passado horas ao teu lado na amurada do prédio sem gente
eu me perdoo por ter fumado um Dunhill em sua homenagem hoje
no banheiro pobre do hotel onde nos hojes resido
eu me perdoo por estar tão distante de você que está no sul do mundo
e que amo tanto tanto tanto sem me dar conta que há tanto mar e tanto
eu me perdoo por ter descoberto em você o amor depois de já ter tido o amor
que em mim agora emana e aquece e me arrefece
como me perdoo

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Acerca de duas memórias



  Por Germano Xavier

O caráter de construção e preservação do esquecimento na literatura: Diálogos da memória em Menino de Engenho, de José Lins do Rego, e em O Fazedor, de Jorge Luis Borges.


Parafraseando Mário Benedetti, poeta uruguaio, é concebível e deveras aplicável, ainda mais em se tratando de uma expressão artística, espaço ao qual ligado está a literatura, a idéia de que lembrar é também esquecer. Como claro também é o fato de que é o trato com a linguagem, com a palavra, que irá conceber o natural caminho para as diferentes essências que, porventura, variados autores possam fazer emergir do misterioso mundo de suas personagens e, por conseguinte, da elaboração do conjunto de reminiscências que dão à trama a passível classificação memorialística. Pegando dois importantes nomes da literatura da América latina, o brasileiro José Lins do Rego e o argentino Jorge Luís Borges, e duas de suas respectivas obras - Menino de Engenho e O Fazedor, respectivamente -, pode-se averiguar a incidência de manejos discrepantes, principalmente no que tange aos caprichos da memória, que pouco pode ser aproveitado se colocados os dois ante um jogo de equilíbrio e similaridade enredo-estilístico.

Autor de diversas obras, Borges sempre esteve no mais alto patamar do cânone literário. Dono de uma palavra tecida sobre o sudário do misterioso, do secreto e mitológico, do metafísico e do fantástico, o homem que tinha verdadeira paixão por livros, principalmente enciclopédias, é possuidor de uma linguagem marcada por construções e narrativas labirínticas - leia-se "labirinto" como lugar de achamento e perdição. Para ele, é no espaço do texto onde tudo pode acontecer, inclusive o despertar para a vida, inclusive o entendimento perante o dilema da morte, genitora de outros nascimentos. Em Menino de Engenho, José Lins do Rego agrega valor ao tempo pós-texto, dando ao leitor um momento único seu, de completo deslumbre e construção. O fator memória, aqui, não está completo apenas através da existência do texto em si, dependendo diretamente das conjeturas que o leitor irá produzir durante toda a aventura do livro.

O Fazedor, publicado primeiramente em 1960 é, segundo ele, seu livro mais pessoal, mais íntimo, mais próximo do homem Jorge Luis Borges. Quase sem linearidade, desprovido de uma unidade morfológica e temática, misto de poemas, ensaios e contos, O Fazedor revela um Borges preocupado com as nuances de sua vida "comum", como pode ser percebido já no texto de abertura do livro intitulado homonimamente. Neste texto, falando sobre sua cegueira, Borges finaliza com a construção: "Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao afundar até a última sombra". É claro que se faz preciso perceber que, por utilizarem de suportes/gêneros diferentes – contos e poemas em Borges e o romance na obra de José Lins -, a apreciação dos constituintes estruturais e semânticos da memória nos dois casos dá-se de maneira também disforme.

Em Menino de Engenho, o contexto social, a trama, os espaços desbravados pelo narrador, a utilização estilística apropriada – uso de verbos no passado temporal, alusão à personagens “simplórias”, utilização descritiva e perspectiva mais coloquial da língua, entre outros fatores, fazem com que haja uma aproximação do interlocutor quase que totalmente desvinculada daquela verificada com a obra borgeana. Já este, remoído e remoendo-se diante da tão extensa potência da memória, e agora sobrepujado pela presença da possibilidade do esquecer, do deslembrar o sentido das coisas e suas faces, suas sensações e iminências sígnicas, parece amargar um sentimento de derrota frente à evolução do seu corpo, do seu organismo, ou seja, seu texto. Ainda no texto inicial da obra, Borges questiona: "Por que lhe vinham essas lembranças e por que chegavam sem amargura, feito mera prefiguração do presente?", duvidando, talvez, ou simplesmente incrédulo ao suspeitar da existência dessa forma viva, autônoma, agente de si: a memória.

José Lins é menos inquiridor, não tendencia sua obra ao mistério do oculto. Ao contrário de Borges, narra esclarecendo, não escondendo. A memória em Menino de Engenho parece mais palatável, verossímil, palpável. Tudo parece estar diante dos olhos de quem lê, a poucos segundos de uma compressão. Atulhado de emoções e recortes de lembranças, livrescas ou não, Borges altera a morosidade da mecânica das reminiscências e põe na superfície do tempo, à mostra de tudo e de todos, o rosto que há por debaixo do capacho humano, do tapete de nossa mente, livrando-nos de certas mortalidades e fragilidades infantis. "O que morrerá comigo quando eu morrer?", pergunta o argentino, falecido em Genebra no ano de 1986. Percebe-se a sapiência e o alumbramento diante da existência de algo mais que não somente a armadura do corpo, da matéria, e essa percepção vai perlongar as páginas do livro inteiro.

“O quarto do meu Tio Juca vivia trancado de chave o dia inteiro. Ali só entrava a negra que lhe fazia limpeza e mudava as roupas da cama.”, escreve Lins no parágrafo inicial do capítulo 30 de seu livro. Não há a existência de um plano interrogativo, de descrença com alguma anormalidade factual ou alguma variante polissêmica que possa impedir a instantânea apreensão do sentido. Seco, sem jamais deixar de atrair, é como se Lins escrevesse/cozinhasse o caldo de sua memória com o mais básico dos temperos. O argentino, mais a frente, no texto Dreamtigers, diz assustado: "(Ainda me lembro dessas figuras: eu, que não consigo recordar sem engano a fronte ou o sorriso de uma mulher.)" É a memória que persiste em não morrer, mesmo dentro da escuridão da visão ofuscada, opaca, translúcida. O susto de ter um outro olho, um olho que não para de lembrar, de ver, de rememorar, de reviver. Após iniciado o confronto, Borges retalha-se em perguntas, a tomar como exemplo: "O que pratiquei com fervor na infância?" - quase uma tentativa de descobrir as razões que o fizeram possuir o "bem" ou o "mal" do guardar tudo, dentro de si. E continua: "Você se suicidou naquele dia?"; "O que ele sentiu?"; "O que buscam os espelhos?"... no centro do furação, no redemoinho da batalha que o autor trava consigo mesmo, surge a presença de Deus: "Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número?", e finaliza o seu argumentum ornithologicum cosendo a frase: "ergo, Deus existe".

A experiência de conhecer o algo a mais que apenas humano faz com que Borges receie, sem muito titubear, que a morte não passa de uma ilusão. Portanto, o esquecimento, ou seja, a morte do que um dia existiu, é simplesmente uma mentira que criamos, ora por nos acharmos fracos ora por não tendermos à resolução de nossos próprios problemas, quaisquer que sejam eles. Em Lins, é como se tudo morresse no átimo de desfecho da atividade leitora, porque nada dentro de sua memória tem o caráter de imortalidade. Talvez não desprezando o tino que evidencia que a morte pode ser uma invenção da debilidade do homem, uma espécie de doença. E o sonho, em Borges, como avesso de tudo, "o sonho de um é parte da memória de todos", escreve no texto martín fiero, onde ainda cita: "o que aconteceu uma vez volta a acontecer, infinitamente". Navega pelas estradas do seu passado tentando averiguar os motivos para tanta liberdade entregue a sua memória, tanta incapacidade de manipular, domar o seu ato de esquecer ou o de lembrar. Lins apenas navega, e como navega, sem se preocupar com o que há por debaixo do espelho d’água. Depois de já ter lutado consideravelmente contra tais mistérios, Borges relata: "O esquecimento devora tudo". Como um rolo compressor, o "parecer e o não ser" adquire o que tanto ele temia: a imortalidade. E o que fazer diante de uma coisa que nos parasita, que mora dentro de nós e que não podemos cercá-la? Buscar o silêncio, seria essa a resposta? Calar-se? Deixar-se? O que operar em nós mesmos quando somos muitos e ao mesmo tempo não somos ninguém? Qual a ordem do jogo e a dos dominados? Nesta celeuma, "sempre se perde o essencial?", interroga Borges. Qual a voz que prevalece, qual o som que fica? O que vive, se "tudo já teve fim há muitos anos?" O que permanece, se "toda glória é somente uma das formas do olvido?"

A leitura borgeana não adormece quando fechamos o livro. Toda uma esfera de edificações se apronta no momento destinado à reflexão, o que parece não acontecer com o livro de José Lins do Rego. Abre-se, então, a porta que dá para o vestíbulo da irremediável memória, este demônio que temos dentro de nós, tantas vezes ponto de partida para sofrimentos, angústias e alegrias várias. No labirinto onde nos perdemos e nos encontramos dia ante dia, noite após noite, assombro vis assombro, resta-nos contentarmos com a ideia de que não estamos sozinhos dentro de nossa individualidade, que não estaremos mortos depois da morte, que não estamos vivos quando pensamos que estamos. Até porque, o que existe por detrás dos espelhos, pode não ser muito bem o que imaginamos que seja. Porque nada pode ser tão óbvio quando suspeitamos que a escuridão é o nosso maior vigia.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Um eu que professa


Por Germano Xavier

Em 2004, depois de passar no vestibular para Jornalismo, tive de esperar cerca de 8 meses para que as aulas começassem no DCH III da UNEB. Nesse curto espaço de tempo, voltei para minha cidade natal sob os auspícios de um convite: Ensinar. Eu, que nunca havia lecionado antes, resolvi acreditar que poderia ser possível, de minha parte, ajudar os outros com um pouco do que eu trazia comigo em termos de conhecimento. Em minha estreia em sala de aula havia mais de 100 pessoas, num cursinho pré-vestibular em Iraquara. Sentados, vi antigos colegas de escola, amigos de outrora, muitos conhecidos e outros tampouco vistos esperando de mim alguma coisa que talvez eu pudesse oferecer a eles e que pudessem usar em algum momento de suas vidas. Pois bem, foi assim. Saí numa noite fria, com nada além de um pincel para quadro branco e um apagador nas mãos, mãe acendendo velas no pé da janela para desejar um bom início de labuta e, quando me dei conta, lá estava eu, numa aula sobre Literatura. Lembro de tudo, do assunto abordado, dos rostos dos alunos, do meu coração batendo forte, da alegria que senti quando alguém levantou a mão e me perguntou algo... o mundo mudou ali, numa fração de minutos. Eu havia descoberto que eu, enquanto ser humano, podia contribuir de alguma forma para um coletivo de seres humanos que, como eu, vivia sedento pelo saber. Daquele dia em diante, muita coisa aconteceu, passei por uma dúzia de escolas, em 4 estados diferentes, escolas particulares, públicas, municipais, estaduais, turmas de faculdade, enfim... e mesmo fazendo duas faculdades público-estaduais ao mesmo tempo (Jornalismo e Letras), jamais deixei de professar em meus horários livres. Depois de formado, no fim de 2009, ainda inventei de me enveredar em Odontologia e Medicina, mas tais aventuras só serviram para eu ter mais certeza daquilo que realmente gostava de fazer e queria fazer. Hoje, com quase 10 anos de experiência em sala de aula, fico feliz ao ver ex-alunos ocupando cargos os mais diversos em áreas também as mais diversas, realizando seus sonhos e caminhando em prol do bem maior. Não sou o professor mais exemplar do mundo, odeio planejamento de aulas e todas as outras questões burocráticas do ofício, já inventei mil e uma desculpas para não ir lecionar naquele dia em que tudo parece chato e intragável, já pisei na bola muitas vezes - e quem não pisa? -, já odiei esta profissão umas mil e uma vezes também por mil e um motivos diversos, mas gosto mesmo de estar em uma sala de aula, em contato com meus alunos e aprendizes e tão ensinantes, únicos seres a quem devo explicações durante toda esta caminhada. Escolhi ser Professor porque eu não seria outra coisa nesta vida - olha eu falando besteira outra vez -, e principalmente porque sei que é por meio da educação de qualidade que podemos transformar as coisas, as pessoas, as sociedades, as ideologias opressoras... então, deixo meu abraço-amigo a todos os colegas de profissão com quem tive o prazer de conviver-conhecer, outro para meus melhores professores e, também, para meus professores mais medíocres, que foram importantes por me ensinarem a como não agir e ser com os meus discípulos. Um abraço de fé a todos os colegas de profissão que estão na educação sem saber o porquê que estão, outro para os que ainda botam fé na revolução partida das mentes. E meu abraço mais apertado para aquele meu aluno, extrovertido ou não, paciente ou não, pobre ou bem vestido, que todo dia acredita que a minha palavra pode ajudar na escolha do melhor caminho.

Feliz Dia do Professor de Verdade!

Com afeto, Germano Xavier.

domingo, 14 de outubro de 2012

As chaves de Mário


Por Germano Xavier

"Eu tinha um chaveiro que chamava de 'chaveiro da solidariedade'
porque ele abria a casa de cinco ou sei amigos para eu me esconder".
(Mario Benedetti, escritor uruguaio)


I

eu deixei meus brinquedos sobre o velho guarda-roupa e nenhum deles resmungou pela falta de carinho. o pequeno pára-quedista da coleção não saltou de lá de cima, tampouco o diminuto homem que comanda aves de rapina, com aquele seu rostinho tingido para o disfarce nas matas, nem ele ensaiou um pedido de S.O.S. meus guerreiros já estão crescidos, pensei. foi assim com meus tabuleiros, com o alvo de dardos pendurado na porta de madeira, alguns ídolos em pôsteres estampados, meio paralíticos, mas ídolos. tudo bem, então, estou partindo. estou partindo, meus queridos companheiros. sei não quando vou voltar, Striker, rei das galáxias de minha mente. Marte, cuide dos outros para mim, por favor. meu coração sentiu um curto aperto, mas fui fechando mesmo assim as janelas e todas as outras guarnições. eu vou retornar, eu vou, seguia dizendo. víveres, precisarei. já na saleta, prontificado de que tudo estava em seu devido lugar, abaixei e saí desembrulhando velhas correspondências que haviam ficado na soleira da porta desde o dia anterior. luz, água e a conta do jornal que só chega nos fins de semana. olhei para a cortina que naquele instante balançava com um vento que entrava pela última janela que havia deixado aberta. quando percebi o quanto estou longe de ser um herói das histórias em quadrinhos que leio. tão diferente, sussurrei.

II

mãe, pai, adeus. ou tchau apenas. volto um dia. irmão, felicidades. um tchau de quem volta um dia. quanta saudade eu deixo, quanta lembrança eu levo. vida danada, estou indo porque preciso demais. vocês hão de entender. por esta porta um certo alguém se empobrece, ou se livra das coisas que não ajudam a ser melhor. porque há sempre vários pontos de vistas para aquilo que fazemos ou não. e mesmo não tendo vocês aqui para servirem de acenos de adeus, eu não desisto agora. não irei - desistir, digo. mas, de fato, eu estava fazendo algo. eu estava indo. por muito tempo deixei de fazer algo por mim mesmo.

III

estou, pensei forte. degraus quadrados assimétricos de concreto o jardim de casa a roseira com a qual gosto de trocar confidências o Jeremias meu cãozinho meu pé de jambo minha vida meu passado e meu futuro qual será qual será qual será? até a gigolete da minha sobrinha pequena, meu deus. ela com aquela mania de prender o cabelo. seria melhor ter consultado antes uma cartomante, uma mulher que conversa com os espíritos da mata, feito alguma reza em quintal de curandeiro? meu futuro, tão totalmente meu que me causa medo. estou com medo do meu futuro. estou em pé de guerra, padres do céu ou obeliscos de oratórios, ajudai-me, peço, encarecidamente, uma certeza. volteio com o corpo que é o meu, fico meio zonzo, mas é um último olhar. olhar uma coisa pela última vez dá mesmo nisso, tonteira. vertigem seria o nome correto. perdemos algo. perdi. ganhei a rua.

IV

vou encostado nas paredes das casas que vão me empurrando, como se possuíssem tentáculos e me forçassem a mais um passo dar. altivo, meio absorto – como pode se estar meio absorto? – sigo arranhando minha pele nas paredes ásperas que delimitam os territórios. pai, veja só, estou na guerra! vai perder seu filho, herói, salvador de vidas, exterminador de outras, que pode voltar com medalhas de honra ao mérito no peito ou que pode morrer na trincheira armada pelo invasor, vai perder o show, pai? estou indo em disparada ao encontro do dia com a noite, do sol com a lua, da terra com a água.

V

não vai me deixar. encontrei a menina que trabalha comigo nas horas extras. ela me falou que estava doendo muito ser. que iria pra sei lá que lugar, mas iria, como eu. é porque no fundo a gente sempre desconfia de que o invasor entrou fundo dessa vez. lobo mau, lobo mau, lobão mauzão. em toda parte. cu de Judas. os cus. agora o exorcismo, é a hora. final de campeonato. ou vai ou racha. sobe no palco, meu velho. engrossa voz, sobe na banqueta, engrossa a voz mesmo antes de qualquer verbo e diz a ordem do dia. puta que pariu, puta merda, vão todos pra. o que pode não dar certo nesta hora... o teu olhar?

VI

foi o fim. não vencemos. já diz o ditado que o segundo colocado é o primeiro que perdeu. somos agora a reserva, o que se não for pode ser. a gente fica com a cara amarrada, é mesmo assim. mas quem vê a gente de longe, com estas nossas faltas de carisma, vai pensar o quê, me diz?! olha que bunda safadinha a daquela menininha de calor nas mangas. salvação. dia bom pra não sair da cama. a cama é o melhor lugar do mundo. a cama é o paraíso. lá tudo acontece. meu abraço, meu amigo, meu irmão. a gente um dia quem sabe. vamos sair por aí. vamos beber o exílio no copo americano. conhaque fino e barato, já viu? se preferir, posso te mostrar minha coleção de neguinhos de combate. lembra do Capitão Striker?

sábado, 13 de outubro de 2012

Capote



 Por Germano Xavier

A história de um homem que construiu uma história, que fez reviver um acontecimento, que imortalizou um fato. Talvez estas poucas palavras não sejam suficientes para elucidar o que realmente é retratado no filme que conta a parcela da vida do escritor e jornalista norte-americano Truman Capote, no filme homônimo ao seu primeiro sobrenome. “Capote” é um filme repleto de riquezas, transgressor e cheio de nuances. Um filme cativante, sobre o processo criativo-realista de um escritor, por ora demasiado agonizante, não necessariamente nesta ordem de palavras.

O enredo acontece nos idos do ano de 1959, quando um brutal assassinato em Holcomb, Kansas, choca toda uma população, acostumada com a calmaria e a segurança do lugar. Tocado por aquela notícia, o escritor resolve fazer uma pesquisa e, logo depois, escrever um livro, que o mesmo intitularia de A Sangue Frio (In Cold Blood). Segundo ele próprio, o que seria o marco inicial do romance de não-ficção.

Ao longo da trama, o que se vê é um Truman Capote de ambição inconfundível, predestinado, perseverante, alucinado pelo que faz ou deseja fazer. Um louco em busca de sua loucura interior, que tanto lhe transtornava. Um desconhecido que se amiga com outros desconhecidos, desconhecidos assassinos, desconhecidos sentenciados. A ganância do escritor Truman extrapola a atmosfera profissional e acaba perpetuando por todo o seu existir humano, e é justamente aqui onde o filme se mostra mais perturbador.

Uma mistura de cinema e biografia, o longa-metragem alicia aquele que o assiste, do início ao fim, levando o telespectador à uma imersão na história da construção do clássico jornalístico-literário, revelando o caos vivido por um homem que vai em busca de um ideal, um ideal de revelação da realidade ( ou das realidades).

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um Mário maior



 Por Germano Xavier

No dia 20 de setembro do ano de 2005, a UNEB (Universidade do Estado da Bahia) exibiu o documentário sobre a vida de um dos maiores folcloristas deste país: Mário Souto Maior. A exibição ocorreu na Biblioteca Central do Campus III, em Juazeiro-BA. A produção é de três estudantes de jornalismo (Belga Coliobar, Gabriela Belém e Renata Falcão) e faz parte do projeto experimental de conclusão do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

O documentário tem como título “Como nasce um cabra da peste” e começa mostrando a cidade onde o folclorista viveu, Bom Jardim, localizada a 110 Km da capital pernambucana. Filho de um comerciante, Manuel Gonçalves Souto Maior, e de uma fazendeira, Maria da Mota Souto Maior, Mário nasceu em 14 de julho de 1920 e teve uma infância comum a qualquer outro menino de sua idade criado no interior. Quando adolescente foi morar em Recife para estudar, pois seu pai acreditava que a instrução era muito importante. Teve uma adolescência solitária e seus únicos companheiros eram os livros, apesar de engajado nos grêmios literários montados por ele e seus amigos do colégio. Já rapaz, conheceu Carmen, com quem se casaria e teria sete filhos, realizando o sonho de constituir uma família.

Atuou como advogado, promotor e professor. Quando retomou o sonho de voltar a escrever seus textos, teve o incentivo de Gilberto Freyre. O documentário ainda traz depoimentos de escritores como Raimundo Carrero e da antropóloga Fátima Quintas, que o define como um grande etnólogo. A produção ainda traz a participação de Carmem e dos filhos Fred e Lis Souto.

Os cerca de 80 livros de Mário Souto Maior edificam e resgatam os costumes e as tradições do povo nordestino. E tratam de temas do cotidiano da vida destas pessoas, como os relacionamentos entre homens e mulheres, o sentido da sogra, o significado dos palavrões, a importância da cachaça, entre outros. Por falar em palavrões, o interessante é que, segundo os parentes e amigos, Mário jamais pronunciou um. Porém lançou o Dicionário Palavrão, impedido de ser publicado pelo golpe militar. No que concerne à cachaça, Mário era um colecionador da iguaria alcoólica. Retratou em quatro livros as diversas histórias da aguardente e não gostava de beber.

A mania de ler e escrever era tão grande, que Mário tinha um escritório no fundo do quintal. Ouvir música e tocar piano foram outras paixões do escritor. Quando muitos afirmavam que o folclore estava morrendo devido às novas tecnologias, chegava a ser categórico ao dizer que todas as ciências foram antecipadas pelo folclore e que o folclore é um "ser imortal". Imprescindível é conhecer a obra desse grande homem e não permitir que sua memória morra. Como disse Mário, “os novos mortos morrem pela segunda vez quando os vivos os esquecem”. O documentário contribui para que isso não aconteça.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Aqueles russos barbudos



Por Germano Xavier

Para Alessandra Pires,
que vez ou outra me recorda este texto.


São dez e quarenta da manhã, um sol lá fora que já está de rachar pele. Ela se sentou ao meu lado. Ao meu lado não havia presença humana, só mesas brancas, coisas imótuas, coisas inermes, coisas mortas. De chofre, percebi a tatuagem na altura do umbigo. Era um umbigo bem feito, uma cavidadezinha harmônica e até, diria, sensual. Continuei a leitura do meu livro. "A descoberta do mundo" era o título impresso na capa. Era um livro de uns 14 centímetros de altura, pequeno até. Se comparado ao tamanho da tatuagem que a moça estampava em sua barriga, ele se tornaria maior. Três ou quatro vezes maior. Peguei-o emprestado na biblioteca pública da cidade onde moro atualmente. Tantos livros espalhados pelas estantes e eu não sei o motivo que me fez escolher este. Talvez a quantidade de páginas, pois é bem verdade que alguém já teria dito que bons livros são aqueles que conseguem ficar de pé. Algum russo barbudo, imagino. Eram quase 500 páginas.

Cabeça baixa. O ar é cada vez mais denso e pesado. Sinto que os outros olham para ela. Roupa de academia, colada ao corpo. Está um pouco ofegante. Deve ter acabado de realizar sua sequência de exercícios. Agora ela se levanta, eu não quero olhar.

Tudo o que mais quero é não olhar, mas eu olho.

Aparentava seus trinta e poucos anos. Devia ser solteira, morar num apartamento sozinha e trabalhar numa dessas grandes redes de lojas onde se vende um pouco de tudo, desde roupas a calçados, mochilas, bicicletas, equipamentos esportivos, et caetera.

Mulheres de trinta anos, balzacas, eu conheço de longe. Sou bom nisso. Aquele ar de cobra criada, experiente. Aquela bundinha dura e empinada, aquele sorriso de quem já deu para todos os chefes de sua vida, em troca de alguma promoção.

Eu olhava para as letrinhas impressas na folha amarelada do livro. Não conseguia ler. Queria ler aquela mulher, misteriosa criatura.

Tenho vinte e dois e acho que ela não se interessaria por um rapaz da minha idade. Devia me achar uma criança. Apenas vinte e dois, motivo para gargalhadas? Mas eu, certamente, já tinha lido mais livros que ela. Livros difíceis, aqueles russos barbudos. Ela não devia ter tempo para ler livros, trabalhava demais. Devia sair de casa o sol ainda nem havia apontado no horizonte. Morava distante e, apesar de seu extrato bancário viver no positivo, ela não possuía automóvel, imagino.

Eram dois coletivos até ela chegar à loja. Uma hora e vinte de trajeto, quando não pegava um congestionamento que a fazia chegar atrasada e receber uma bronca do patrão. Para não ser despedida, usava a boa e velha tática. Muito fácil, era hora de dar para ele.

Talvez fosse feliz com a vidinha que levava. Não aparentava precisar de nada. Só os olhos eram um pouco caídos e soturnos, mas não eram enfadonhos em demasia. Uma tristeza sutil, apenas.

Resolvi falar com ela, depois de relutar muito:

"Bom dia, moça. É Netuno?"

"Não converso com estranhos."

"Mas eu só estou querendo saber se é Netuno. E eu também não sou um estranho. Moro na mesma rua em que você mora. Rua das Castanheiras, no Alto do Lapão, próximo à travessa Rodeadouro..."

"Está bem, já entendi. Não preciso mais de coordenadas. Eu sei onde moro."

"E então, é Netuno aí, perto do seu umbigo?"

"Por que eu deveria responder? Não sei nem o seu nome..."

"Perdão, pode me chamar de Silva."

"Meu nome é Fernanda."

"E..."

"É. É Netuno. Gostei desse desenho. Acho ele forte. Sou uma mulher forte, combinamos. Netuno e Nanda, um só espírito, um só corpo."

"Bonita e ampla!"

"Olha aqui , seu..."

"Calma, Fernanda! Estou falando da sua tatuagem. É bonita e ampla. Li isso num livro."

"É de algum russo barbudo?"

"Não sei, não lembro."

"Costumo lê-los. Gosto mais dos literatos elisabetanos."

"É uma boa preferência."

"Aceita? Refrigerante..."

"Não, estou de dieta."

"Não está gordo!"

"Tenho de ir. Tchau!"

"É cedo!"

"É sempre tarde para mim. Tchau!"

"..."

Eu devia ter medo dela. Não foi assim tão natural o nosso diálogo. Ela continuava achando que era muito, mas muito cedo para eu ir embora. Mas eu tinha lá minhas razões. Primeiro que não gosto de refrigerantes. Me dão azia. Segundo, é que nunca imaginei encontrar uma alma feminil que curtisse a literatura dos "barbados". Ou seriam "bárbaros"? Confesso que senti um medo, repentino. Não sei o porquê, mas um medo me ocorreu. E foi justamente ele que me fez ir embora naquele momento, de súbito, assim.

Mulheres não foram feitas para lerem grandes autores, do passado nem do presente, tampouco aqueles russos barbudos. No máximo esses livrinhos de auto-ajuda, revistas de fofocas, zodiacais... Grandes autores escrevem para homens, exclusivamente para eles, homens como eu. Mas toda regra deve mesmo ter sua exceção, e ela era diferente. Ela era forte, tinha Netuno tatuado na altura do seu umbigo. Ela e Netuno, sabem como é... um só corpo, um só espírito.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Humo



 Por Germano Xavier

“Meu nome é Caio F.

Moro no segundo andar,
mas nunca encontrei você na escada

Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.

Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.

No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?

(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)

Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.

Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.”

(Caio Fernando Abreu - Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)


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Meu nome não te importa.
Sou quem você quiser.
E moro e habito a tua cegueira.

Homem, você jamais me viu. Perdoe-me também, pelo desaparecimento - se é que um dia apareci. Foi uma cilada que o tempo armou, mas eu te sempre amei. Você não via minha seminudez desavergonhada quando descia a escada escorando toda a tua cavalaria pelo corrimão. Assisti inteira à tua velocidade descabida e perdida nas horas do tempo ligeiro, às tuas descidas e subidas, às tuas idas e vindas. E minha vilania emudecia em tuas vistas. E mesmo ao passo de tua cegueira, a própria vida se encarregava de me dar um empurrão. E eu caía num vôo-vão tão grande quanto a vontade de ti que eu tinha.

Não sei, mas você corria tanto de minha ausência porque eu deveria querer-te tanto em dobro. E esse querer era em demasia. Você não reparava nas cores berrantes dos meus vestidos e nos berros que dava o meu coração. Tua solidão me era deixada sempre quando a porta do teu apartamento era lançada contra o umbral, esquina e aresta muda, daquela madeira escura que você mandou trocar. Eu ficava olhando pelo olho-mágico teus modos rudes de abrir e fechar portas. E me apaixonava por tua rudeza. Não tenho livros como você, não tenho lugares a ir nem me causo sofrimento por não os possuir. Único lugar que quis me apoderar era teu colo másculo. Porque tua força estava na tua inexistência, assim como o meu poder era facilmente encontrado no olho vago de você recebendo o jornal, nas manhãs do tempo. Tenho óculos e nunca me obriguei a usá-los para tornar mais nítido o meu assombro. Você era visível demais em teu afastamento. Quando mais quis você, mais foras distância. Assim você não largava meu corpo, minha alma, minha unha corada de vermelho-escarlate, meus anéis grossos nem minhas calcinhas de renda. Homem, você estava em mim e era lábaro enroscado no dorso do atleta vencedor. Maratona começada quando os galos invisíveis das cidades grandes cocoricavam.

Eu precisava como você. Na verdade, eu precisava comer você. Comer com os olhos já não me bastava mais, e eu passava o dia inteiro e a tarde inteira e a noite inteira se fosse necessário para apenas arriscar o respirar teu cheiro. Aquele perfume popular perfumava a sala e eu empurrava o perfume para lá dos meus cômodos mais sociais. Queria meu travesseiro e meu lençol impregnado de você suado e surrado em ares tortos. Minha necessidade era a de manter um homem malcuidado, carbonário, homem e sombra de homem, do homem, junto a mim, mulher e sombra de mulher, da mulher, peer-to-peer, em esgotamentos de carne e vísceras e miolos e artelhos e pênis. Eu precisava de alguém que lesse as dobras que cultivo na altura de meus pulsos e que me dissesse você terá três rebentos sadios, frutos do sumo do suco do amor. Eu carecia de tuas camisas desabotoadas, casas sem botões, botões sem casas, para fazer morada no teu peito livre de prisões. E me exigia dia a dia o cuidado que você demandava. Ou pensas que eu não te massageava o trapézio quando de tuas malemolências e dorminhoquices precoces? Lá estava eu, baby, afundando meus dedos de creme e óleo na tua pele rosa. Lá estava a mulher e a sombra da mulher, de mulher, de mulher para homem, meu homem, fundando o encontro preambular dos júbilos.

O segundo andar era nosso. Eu 202, você 201. Tão perto era o frio do teu café em minha mesa. Tão quente era o gelo no teu congelador. Tão breu era o escuro do teu filme, assistido sem êxtase, sem brilho e em televisão sonolenta. Aliás, ligávamos a tv só para sonharmos unidos. Vinha logo a queda das pálpebras e o mundo nos cobria. Mundo que não era somente mundo. Mundo que era mais o bruxulear das lâmpadas fosforescentes. E para chegar a mim, você, homem que mata, bastava-se de nadas. E eu não queria a pantomina toda se eu quisesse apenas o gole do teu beijo. Para mim, você foi tudo todos os dias de que vivi em minha vida. As outras que fui, não souberam do meu amor. Por isso, deixo-te estas palavras, urdidas em pranto que nunca chorei, tecidas em sexo que nunca usei, para simplesmente dizer que neste momento morro do gozar azedo do meu nada humilde medo, para simplesmente dizer que morro do tão cedo me afugentar eterno e, finalmente, para simplesmente dizer que morro da dor do amor no sempre e para o sempre adormecido.

Em festa estou, e acendo-me em gás butano.
Sou supernova estelar.
E já mar...

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sobre "Novenário", de Fernando Sales

Fotografias: Germano Xavier

"A poesia de Fernando Sales tem muito de artesanato, ela é um fazer, mas não é apenas isso", assim escreveu Haroldo Bruno Filho quando da publicação de Novenário, livro do autor baiano dividido em três partes: I - Cânticos à Padroeira; II - Noturno de Agosto e III - Três orações de amor à terra. Letras vindas de uma alma da Chapada Diamantina apaixonada pelo ser telúrico que aqui se caracteriza singular. Poemas sem métrica dão o tom da poética, assim como a virgulação dispersa louvando o ente religioso que também somos. Alusões diretivas à Nossa Senhora da Glória, à antiga igreja de Lençóis-BA que ruiu após um raio, ao costume das procissões, à figura do garimpeiro em prece silenciosa no meio das alvoradas musicais. O novenário feito de poemas começa exaltando as crianças, depois as moças, rapazes, casados, velhos, caixeiros, funcionários, comerciantes e, por fim, os garimpeiros. No final do livro, Sales ainda nos presenteia com as seguintes crônicas: "A casa de Nossa Senhora", "A saudação da amizade" e "A terra, a gente. O Futuro".

Clique nas imagens para ampliar:



sábado, 6 de outubro de 2012

Poema hilstiniano para manter acesos os lampiões



 Por Germano Xavier

porque o meu sábado é o teu sábado
e depois de tudo nem o vento que vem do norte
nem a água marítima escoada com força no vau
obtusa a esfera do amor que temos em nós como desvelo

mais revelação de vida imposta sobre escombros
porque a queda só nos é dada após o voo insano
já que voar é tanta liberdade por que não

subir subir subir em asas e do alto sorrir em brasa
néctar humo mel fel gosto pois
um cão chamado amor rosna e late e fere e marca
disfarçado neste teu sorriso lindo torto

porque proclamo independência em mim
e a festa só com você pode ser sol com festins
lua no teu sexo amor amor amor um gole mais
um trago a mais o exagero preciso
já que não sonho ser homem sem teu corpo

que esta voz interna aqui no centro me assenta
um derredor cavernoso buraco vago no nada nem
vem cobrir de esforço com teu mando em mim
encontrado em ritual eterno e nunca póstumo
durado no silêncio trepado em nossa bruta espera

Cristalizado eco



 Por Germano Xavier

cristal fundido em dias
é a hora do pensamento
em você e você é aquela
árvore em chamas
como as árvores de Brecht
em centelhas rodeadas
queimando pirotécnicas
você aturde o vácuo instante
como um exercício o branco
brilho causa da morte viva
esta abordagem a que sou submetido
vinga e imanta o eco aberto
no corredor vestibular sem quem

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O departamento



 Por Germano Xavier

a repressão não

procura submergir
a criança
(envoltos estão os significados, as formações)

ambição!
não
as máquinas abstratas não são negócios de instâncias psicológicas
antes de depender das ciências da cultura das ideologias das gias dos ensinamentos elas dependem da política do desejo
me dê o não

de ti preciso sua perna é larga seu passo
paço
para ampliar o pretendido período de latência
Freud é duvidável
a esfera AMBIÇÃO! das passagens dum agenciamento para outro
(Marcador pela repressão social)

mas que perna larga, que pena larga
o coração iluminado...
e todo conjunto repressivo sobre o conjunto das máquinas desejosas não age
faz por meio das ABSTRATAS
ATÉ NISSO -
SOCIAL-INDIVÍDUO
o coração sombrio

zonas biológicas
zonas psicológicas
zonas sociais
eu não estou pensando em ninguém
as máquinas de ensino não têm por fim primordial transmitir informações conhecimentos uma cultura mas transformar inteiramente as coordenadas semióticas da criança o período de latência é um fazer construir pessoas que -
15 anos de duração?
submeter indivíduos até o mais íntimo de suas feiúras
nervosas
todo o sistema de produção capitalista meu deus...
família escolar reeducativos remédios baRATOS
deseficientes
na medida que conseguem prender
e o inconsciente só existe após a sua manifestação nas estruturas semióticas ou nas estratificações sociais ou materiais - ratos potenciais me devoram?
sintomas maquínicos ameaçando
o retorno poderoso
minha própria dissociação
cuidado, criancinhas
os departamentos nos corrigem