sábado, 13 de abril de 2013

Sobre a Virgem dos Lábios de Mel


Por Germano Xavier*

Sobre a virgem dos lábios de mel

Trabalho de pesquisa realizado para obtenção de nota na disciplina Literatura Brasileira II, orientado pelo professor Bruno Siqueira (Primeira versão).

Palavras-chave: Literatura; Cinema; Comunicação; Indústria Cultural; Cultura de Massa; Intersemiose; Reprodução da Arte.

TEMA:

Iracema: Da essência de José de Alencar ao cinema de mercado. Uma análise do fenômeno da multiplicação imagética da Virgem dos lábios de mel.

OBJETIVO:

Fazer um paralelo entre a personagem Iracema, presente na obra de José de Alencar, e a personagem homônima mostrada no filme “Iracema: A virgem dos lábios de mel”, de Carlos Coimbra. E, a partir disso, identificar e analisar os elementos “facilitadores” de uma maior popularização do romance, transpostos para a esfera da indústria cinematográfica, tendo em vista os interesses e paradigmas da indústria cultural e da cultura de massa.

NOTA:

A pesquisa toma como pontos culminantes e essenciais para a análise o Capítulo XV do livro Iracema, de José de Alencar e o excerto do filme “Iracema: A virgem dos lábios de Mel”, de 1979, que vai dos minutos 00.29:38 aos 00:38:26. Aqui é o momento onde Iracema, pressentindo a ida sem retorno e derradeira de Martim para as terras portuguesas, resolve revelar ao seu amado o segredo que guarda consigo, quando oferece o licor da Jurema ao estrangeiro e simbolicamente doa-lhe a vida, desrespeitando suas tradições e ficando vulnerável à morte.


Veja abaixo o capítulo XV da obra alencariana e o roteiro do filme transposto para o papel:

1) Capítulo XV

Nasceu o dia e expirou.

Já brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas, filhas da lua, que esperam a volta da mãe ausente.

Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua vontade oscila de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.

Iracema recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entram n'alma. O cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai declinando o lascivo talhe, que se debruça enfim sobre o peito do guerreiro.

Já o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca o lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d'alma, o himeneu do amor.

No recanto escuro o velho Pajé, imerso em funda contemplação e alheio às cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso Pressentira o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus filhos, que assim ecoou n'alma de Araquém?

Ninguém o soube.

O cristão repetiu do seio a virgem indiana. Ele não deixará o rasto da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não ver; e enche sua alma com o nome e a veneração de seu Deus:

—Cristo! . . . Cristo! . . .

Volta a serenidade ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias uma onda de ardente chama. Assim quando a criança imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam as faces.

Fecha os olhos o cristão, mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bela. Embalde chama o sono às pálpebras fatigadas; abrem-se, malgrado seu.

Desce-lhe do céu ao atribulado pensamento uma inspiração.

—Virgem formosa do sertão, esta é a ultima noite que teu hóspede dorme na cabana de Araquém, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e feliz.

—Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?

O cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pajé:

—A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!

Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

—O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus irmãos!

—O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!

A virgem ficou imóvel.

—Vai, e torna com o vinho de Tupã.

Quando Iracema foi de volta, já o Pajé não estava na cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba de algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos, e libou as gotas do verde e amargo licor.

Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.

O gozo era vida, pois o sentia mais forte e intenso; o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a imagem.

Iracema afastara-se opressa e suspirosa.

Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.

A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas, e voa a conchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.

Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.

A jandaia fugira ao romper d'alva e para não tornar mais à cabana.

Vendo Martim a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir.

A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano; sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se espanejava.

—Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem de Tupã amargam e doem como o espinho da jurema.

A filha de Araquém escondeu no coração a sua ventura. Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.

As águas do rio banharam o corpo casto da recente esposa.
Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras


2) Roteiro do Filme

Falas do excerto analisado

Iracema – “Estrangeiro deixará os olhos de Iracema, mas não deixará sua alma” (Iracema leva Martim para fora da caverna onde se encontram). “Aqui junto da itaóca, há um paraíso banhado pelo sol e pela lua. É o segredo de Iracema, que agora também vai ser teu. É aqui que Iracema mistura o licor verde da Jurema. É aqui que Tupã guarda seu segredo protegido pelo trovão. Descansa, guerreiro branco. Iracema vai conversar com as águas, suas amigas”. (Iracema banha-se. Sons e imagens criam uma atmosfera que desperta sensações em Martim.)

Martim – “Meu Deus, meu Deus!” (A personagem mostra-se aflito e aturdido) “É a última noite que passo junto de ti, de teus olhos, de teus encantos. Para o nosso bem, ajuda-me a fugir para o mundo dos sonhos. Vai, Iracema, e volta com o doce licor de Tupã, capaz de entorpecer os meus sentidos.” (Iracema realiza o desejo de Martim e este toma o licor. Martim cai, em devaneio. Iracema aproxima-se e o acaricia. Beijam-se, tocam-se. Imagens da cachoeira e dos animais aparecem. Tomadas destacando a flora amarela e vermelha surgem. Flores caem do céu e uma pousa no cabelo de Iracema. A cena corta para o fogo da fogueira de Araquém, reunidos com sua tribo, que evoca Tupã. Ouve-se tambores).

Iracema – “Prepara-te, é a hora de partir.”


Em termos gerais

Sodré (1995, p. 189) é categórico ao afirmar que “Burguesia e romantismo, pois, são como sinônimos, o segundo é expressão literária da plena dominação da primeira.” Isso porque, na Europa, o Romantismo tem seu triunfo exatamente no século XVIII, quando a burguesia tem sua ascensão como classe social que irá destruir os últimos vestígios da dominação medieval. Mesmo período em que a Revolução Francesa acontece e derrota o sistema que mantinha o feudalismo.

Então, a vida urbana se desenvolve, os instrumentos necessários para que a burguesia leve sua vida são criados, o teatro, esse elemento de aproximação entre a burguesia e o povo, a imprensa, e junto a esta, o livro, só que esse relembrava os aristocratas, e especialmente os folhetins, que divulgava as sementes do tema e da forma do Romantismo aos que se distanciavam do teatro e do romance. A vida cultural não é mais privilégio da aristocracia, mas da burguesia, dos remanescentes da aristocracia e de populares.

Se a burguesia se contrapunha à aristocracia, o Romantismo se opunha ao neoclassicismo. Este buscando a Antigüidade pagã, o mundo greco-latino, enquanto que o primeiro buscava a Idade Média, com suas lendas e material folclórico. O Romantismo buscava mais a imaginação do que a inteligência, a sensibilidade à razão, a criação individual às regras e modelos, além da exploração da natureza com seus aspectos pitorescos.

E no Brasil, como que o Romantismo se estabelecia?

Sodré (p. 201,) afirma o seguinte:

Assim, enquanto o romantismo, em suas raízes européias, representava o pleno triunfo burguês, o coroamento de suas conquistas, conseguidas através da aliança com as classes populares, aqui seria de condicionar-se, muito ao contrário, à aliança existente entre uma fraca burguesia e a classe dos proprietários territoriais.

Isso aconteceu porque na primeira metade do século XIX, quando os portos do Brasil são abertos, a Revolução Industrial é impulsionada, a Inglaterra tem a primazia econômica e pede a abolição da escravatura, e as colônias americanas têm a possibilidade de independência, a burguesia brasileira não tinha espaço político, e nem podia se impor economicamente, por isso, buscava se confundir com os senhores de terra, ao contrário da burguesia européia, a brasileira não encontrava vantagem em se aliar ao povo.

Assim, podemos estabelecer que no Brasil o Romantismo se deu pela urbanização das classes territoriais, tendo a burguesia atrelada a si.

Então, começa a nascer o pequeno público leitor brasileiro. O estudante, filho do proprietário de terra que teve seus estudos iniciais começados na fazenda com o vigário ou o mestre particular, as mulheres, filhas ou senhoras de terra que passavam a viver na cidade, os funcionários de bancos, do governo, empresas, pessoas que dependiam da vida urbana para trabalhar.

E é exatamente esse público urbano que é retratado em A Moreninha, pois como diz Sodré (1995, p. 223),

É com Joaquim Manuel de Macedo que encontramos o romance urbano. E é com ele que a ficção conquista os leitores de seu tempo. Em Macedo, o que aparece é a rua, a casa, o namoro, o casamento, o escravo doméstico, a moça casadoira, o estudante, o homem de comércio, a matrona, a tia, o médico, o político, a pequena humanidade que vive na Corte , que se agita em seus salões, que freqüenta o teatro, que se agrupa nas “repúblicas”, que povoa as lojas, que lê os jornais e que discute os acontecimentos do dia.

Portanto, no livro A Moreninha o público leitor se enxerga. Mas eu quero aqui abrir um parêntese para dizer que essa apresentação não tem o propósito que fazer um histórico minucioso a respeito do Romantismo brasileiro, por isso que não abordaremos a trajetória do teatro, com seu principal representante Martins Pena, não abordaremos os passos da poesia, e tantos outros detalhes que poderemos discutir em outras oportunidades.

Outro passo importante no Romantismo brasileiro foi

Em 1852 e 1853, num folhetim do Correio Mercantil, intitulado “Pacotinha”, começaram e terminaram de aparecer os capítulos de um dos romances mais divulgados e menos compreendidos de nossa literatura, as Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. O traço singular desse aparecimento foi o sucesso que alcançou, dentre os limites da época, entre os leitores comuns, [...]. (Sodré, 1995, p.227).

Com as Memórias de Um Sargento de Milícias, pronto, um grande público leitor de romances estava conquistado. Chega-se a setembro de 1854 e julho de 1855, quando Alencar redige no Correio Mercantil, em folhetim, O Guarani.

Com este romance é que o indianismo alcança, entre nós, o público. E por isso é que deve ser considerado o momento inaugural da tendência que, se não foi duradoura, nem por isso deixou de aprofundar seus efeitos e traduzir a ética do tempo. Não traduziu a realidade do índio, evidentemente, e nem tal caminho teria levado o indianismo à divulgação que alcançou. (Sodré, 1995, p. 281, grifo nosso).

E por que o indianismo no Brasil?

Primeiramente por motivos históricos. Os viajantes que por terras americanas passavam, mais especificamente por terras brasileiras, escreviam suas percepções relacionadas ao índio e as transmitiam aos letrados da Europa, ocasionando o mito do bom selvagem.

Como bem afirma Sodré (1995, p. 259,, grifos nossos),

O sinal mais profundo, entretanto, e aquele que mais de perto nos interessa, para a elucidação das origens do indianismo, esteve na larga influência que as idéias sobre os indígenas americanos, particularmente os do Brasil, exerceram na mentalidade do tempo, influência que deixou um sulco profundo, [...]. Aquelas idéias afirmavam, realmente, a bondade do índio, seu natural inocente, sua vida despida de problemas, a fidelidade das esposas, a simplicidade do amor feminino, totalmente destituído de entravas, a beleza corporal, a saúde, a longevidade.

Nessa afirmação de Sodré, podemos encontrar os predicados das personagens de Iracema, a obra analisada por nós. Bondade, qualidade do irmão de Iracema, Caubi, além do amigo de Martim, Poti. Vida despida de problemas, qualidade do quotidiano das duas tribos, Tabajara e Pitiguaras, essa qualidade contrasta com a vida urbana vivida pelas sociedades românticas, a busca pelo lucro, as futilidades de então. A fidelidade das esposas, podemos personificar à personagem Iracema, que deixou tudo por fidelidade ao seu homem, sua tribo, seu pai, seu irmão. Também vemos em Iracema a simplicidade do amor feminino, bastava apenas o seu homem, o resto se conseguia depois. A beleza corporal, a cor de Iracema é ressaltada constantemente no livro de Alencar, a essa característica Coutinho (2001, p.147), diz que a cor da pele local torna-se além da expressão sentimental e lírica, um sensação de excitação. E tal característica, tornou-se um prelúdio do Realismo.

Então encontramos a saúde dos guerreiros tabajaras e Pitiguaras. A longevidade, por sua vez, encontramos na figura do pajé, pai de Iracema e Caubi, Araquém. Eu confesso que tentamos a todo instante dissociar o negro da preferência do índio no Romantismo, não por motivação preconceituosa em relação ao negro, mas por acharmos que a temática, ou ausência, do negro no Romantismo merece uma análise mais minuciosa. Contudo, Sodré dá como segundo motivo para a escolha do índio como herói no Indianismo exatamente a posição do negro na sociedade de então.

A valorização do índio, conforme buscamos evidenciar, representava uma idéia cara à ascensão da burguesia. Do ângulo interno, correspondia inteiramente ao quadro das relações sociais dominantes. Representava um contra-senso histórico, evidentemente, se o elemento valorizado tivesse sido o negro. No quadro daquelas relações, que subsistem intocadas com a autonomia, o negro fornecia o trabalho, colocava-se no extremo inferior da escala. Não consistiu uma coincidência o fato de ter sido Alencar, a figura máxima do indianismo, o fundador do romance brasileiro, um escravocrata. (Sodré, 1995, p. 267, , grifos nossos).

Pois bem, esse escravocrata é descrito assim por Coutinho,

o patriarca da literatura brasileira, símbolo da revolução literária então realizada, a cuja obra está ligada a fixação desse processo revolucionário que enquadrou a literatura brasileira nos seus moldes definitivos. (Coutinho, 2001, p. 153).

Mais a frente, o mesmo autor é enfático ao afirmar que

[...] José de Alencar representou o pensamento mais avançado, como o polarizador dos anseios e esforços do espírito nacional pela posse de uma consciência técnica no tratamento e na compreensão do fenômeno literário. ( Coutinho, 2001, p. 174).

Em outra obra, o crítico, ainda falando do papel de Alencar na busca pela nacionalidade da literatura brasileira, ele afirma que Alencar foi “o interprete genial, num esforço consciente de dar corpo às próprias tendências da alma”. (Coutinho, 2008, p.38).

E o autor segue afirmando que

[...] Alencar falou em nome do futuro, vendo, com razão, que a civilização é mestiça, nem branca, nem negra, nem indígena, mas mestiça, “brasileira”, algo novo, de características peculiares, resultado do amálgama racial e cultural que aqui se processou. (Coutinho, 2008, p. 73).

E o autor ainda afirma que Alencar representou o grupo dos “brasilistas”, isto é, pertenceu ao grupo dos que viam a literatura como produto provido da espontaneidade e da teluricidade, voltando-se para dentro do país, “retirando dele os motivos da construção literária”.

Sodré (1995, p. 282, grifos nossos), por sua vez, a respeito de Alencar diz,

Cronista, teatrólogo, orador e político, José de Alencar ficou realmente na história literária como o romancista por excelência de uma época. Nem mesmo por suas incursões no campo do romance urbano, de costumes, com os seus perfis de mulher, deslocaram a preferência dos leitores daqueles livros em que, no campo de sua predileção, trabalhou com os materiais característicos, o índio e a paisagem. Sua observação, denunciava na agudeza das crônicas, apanharia muitos dos traços da sociedade brasileira do tempo, situando-os nas figuras femininas e nas que as rodeiam. A mestria, entretanto, estava naquilo que, em sua obra, continua a atrair as atenções, e isso é que assegura a permanente fascinação que os seus livros exercem, constituindo uma iniciação literária que se repete através do tempo. Nem pode ser desmerecido seu esforço, apesar dos reduzidos resultados, em introduzir na criação literária uma linguagem mais próxima dos brasileiros do que aquela utilizada pelos que imitavam seus mestres lusos. Fundador do romance nacional, José de Alencar pretendeu compor um quadro do país que abarcasse toda a sua variedade. (Sodré 1995, ,p. 282, grifos nossos),

Portanto, tanto Coutinho quanto Sodré vêm em Alencar um autor que reconhecia a variedade brasileira, o primeiro ao dizer que Alencar via a civilização nacional como “mestiça, nem branca, nem negra, nem indígena, mas mestiça, ‘brasileira’”. E o segundo ao dizer que “José de Alencar pretendeu compor um quadro do país que abarcasse toda a sua variedade”.

Em outra vertente, contudo, encontramos a opinião de Veríssimo, esse disse que José de Alencar

Pôs-se a estudar a língua mais com o propósito de encontrar nesse estudo antes justificativa do que emenda dos seus defeitos de escritor, nos quais desarrazoadamente e com dano da sua literatura perseverou do nosso passo acarocoando com o seu exemplo ilustre a funesta intrusão individual do natural desenvolvimento da língua. Há no estilo de Alencar, colorido, sonoridade, mesmo música, eloqüência, emoção comunicativa, mas há também ênfase e mau gosto. (Veríssimo, 1994, p. 271, grifos nossos).

Ora, encontramos em Veríssimo, uma sensível má vontade para analisar as obras de José de Alencar, para ele, a melhor obra de Alencar é O Guarani. Mas ele não se cansa de criticar a cultura, a capacidade política, a capacidade de orador do cearense. Mas é na linguagem adotada por Alencar que Veríssimo encontra motivo para expressar sua maior revolta, embora, haja vasta literatura elogiando as mudanças na linguagem adotadas por Alencar. Tais elogios servem para justificar a busca pela nacionalização de nossa literatura.

Mas, com todas essas críticas levantadas por Veríssimo, o autor não deixa de reconhecer o valor de Alencar, transparecendo até mesmo uma contradição de sua opinião aqui demonstrada.

Alencar é uma das principais figuras da nossa literatura e, [...], um dos seus fundadores. [...]foi José de Alencar o primeiro dos nossos romancistas a mostrar real talento literário e a escrever com elegância. (Veríssimo, 1994, p. 259).

Alfredo Bosi faz enriquecedoras considerações a respeito das personagens femininas criadas por José de Alencar, e em relação ao romance Iracema, ele é tachativo ao afirmar que Iracema é uma

[...] obra-prima onde se decantam os dons de um Alencar paisagista e pintor de “perfis de mulher” firmes e claros na sua admirável delicadeza. (Bosi, 1994, p. 139).




Literatura, História, Mídia, Contemporaneidade e o fenômeno de popularização da imagem de Iracema, a virgem dos lábios de mel

O livro Iracema está dentro do Romantismo, “expressão literária da plena dominação burguesa”, segundo Sodré. Mais especificamente, dentro da fase indianista. O Brasil, nessa época, penava quando o assunto era a difusão cultural em seu território. A burguesia, por sua vez, terminou por atuar como facilitadora de inúmeras intervenções sociais no que diz respeito à promoção e incentivo às letras. Variados foram os fatores que favoreceram o desenvolvimento da prática da cultura e do maior prestígio do livro naqueles idos. Um desses fatores, segundo Sodré, foi a abertura dos portos que, segundo o autor, “aumentou sem dúvida a sua entrada, antes clandestina em grande parte, e os compradores iriam proporcionalmente aumentando, com a melhoria em relação ao que se dava nos primeiros anos do século”. Apesar de ainda pouco representativa, a melhoria do aumento de leitores no período possibilita dizer que o Romantismo inaugura uma forma que começa a tornar comum a literatura, começa a popularizar o livro.

Ainda no tocante ao indianismo, Sodré é veemente ao dizer que a respectiva fase literária “encontraria receptividade enorme no mundo dos leitores”, porque, de um modo ou de outro, “atendia aos anseios de afirmação, que a Independência, ainda recente, vinha impor e estimular”. É digno de nota, também, ainda segundo o crítico, “a iniciativa dos ilustrados pernambucanos, que diligenciavam por tornar acessíveis os livros, como o Padre João Ribeiro Pessoa na Academia do Paraíso, franqueando a sua coleção e procurando enriquecê-la”, tudo no intuito de farejar um novo horizonte que estava se abrindo frente aos diversos segmentos da cultura brasileira.

A burguesia cria os instrumentos necessários e termina por generalizar a curiosidade pelas criações artísticas, particularmente, através do improviso e do teatro. Assim sendo, “sua aliança com o povo, na luta contra os remanescentes do feudalismo, permite levar-lhe a conhecimento dos novos tipos de arte, associando-se à difusão, fazendo dele participante do grande espetáculo literário que começa a se desenrolar. Cria-se , com isso o público, isto é, a platéia indiscriminada, que assiste às peças ou lê os folhetins e os livros, cujo gosto é necessário atender e cujas preferências geram até notoriedade”, reforça Candido.

O livro, nos tempos atuais, ainda é uma obra que luta em prol do não-esquecimento. A modernidade e a contemporaneidade se caracterizam por uma dificuldade crescente de narrar, de lembrar. Com isso, surgem novas formas de memória e de narrativa, cujos âmbitos e progressos se arvoram ao passo que um complexo de necessidades e desejos são instaurados por uma “máquina abstrata” ordenadora e apelativa, afeita ao capitalismo e suas bifurcações e, também, ao sonoro efeito de um mundo essencialmente globalizado, onde pessoas das mais diversas classes sociais são “niveladas” através de inúmeras ferramentas de produção ideológica. Todos os meios de comunicação são suportes da lembrança, do fazer lembrar. A literatura, o cinema, a televisão, o rádio, entre tantos outros. Todos, com seus devidos métodos de produção e transmissão de mensagem, corroboram a idéia de que há uma matéria a ser preservada, seja ela um assunto, um fato, uma idéia, uma estória, um protesto ou qualquer outra atividade humana.

O ser de hoje é diferente do de outras épocas, deveras. Ele muda porque tudo muda ao seu redor. Este novo habitat proporciona aos indivíduos uma rede enorme de estímulos, condicionamentos e provocações sensoriais. A civilização moderna, com sua tecnologia, está oferecendo ao homem novas formas de perceber, sentir, intuir e pensar. O homem de hoje é um homem-massa, onde a imagem e o som igualam os receptores. A divulgação das informações não difere, essencialmente, entre o indivíduo intelectual e o não intelectual, porque a diferença dos instrumentos intelectuais e culturais que prevalece nas mensagens, divulgadas pelos mass media, cada vez mais é encurtada. Até bem pouco tempo atrás, as elites culturais eram círculos impenetráveis. De uma civilização de privilegiados estamos passando a uma civilização de massas, já que, superadas as diferenças de classe, a massa, atualmente, é protagonista da história e, portanto, sua cultura, a cultura que ela produz e consome, é um fato predominante.

A obra Iracema, do autor brasileiro e cearense José de Alencar, converte-se ao que denominamos “massivo” -ou aproxima-se mais-, através do suporte cinematográfico – aqui conferido à direção de Carlos Coimbra, num componente que busca, por assim dizer, a aproximação direta com a realidade cotidiana, pois é com a transposição da palavra escrita para a tríade imagem-som-movimento, de que o cinema é partidário, que a personagem principal do livro de Alencar reconfigura-se num objeto do pensamento social que deseja atingir um máximo contingente de expectadores “consumidores” de arte, transformando-se numa representação social dotada de autonomia, reformulando/renovando a personagem original ao mesmo tempo em que modifica o social, ao passo que elabora a visão que as pessoas têm da obra, do autor, da protagonista, de si mesmas e do mundo em que vivem.

É verdade dizer que muita diferença há nos excertos selecionados, devido à transposição pouco fidedigna à obra presente no filme do cineasta paulista falecido em 2007. Todavia, estes mantêm um paralelo fixo entre elementos e falas primordiais que possibilitam o entrelaçamento dos mesmos, assim como a legitimação do presente estudo.

Compreender de que forma, ao partir do setor fechado e especializado da obra-literária/livro/literatura-, através da divulgação pelos meios de comunicação ditos mais “populares” – aqui o cinema-, a narrativa adquire uma nova significação perante a maioria populacional é tarefa importante para quem se destina averiguar as inumeráveis nuances que comprovam tal fenômeno, pois como diz Candido, “a massa elabora a fama literária num plano quase folclórico, ainda mais a capacidade de alguns escritores que conseguem firmar-se no seu conceito”, sem saber realmente o porquê de todos os apliques de criticidade direcionados ao conjunto de uma obra.

Há, nitidamente, um encadeamento de fenômenos interativos tanto no livro quanto no filme, frutos dos processos sociais individuais (autores) e coletivos (sociedades/grupos sociais), que funciona como um sistema de produção e recepção de novas informações. Sobre este plano, o conceito de comunicar como tornar comum, partilhar, repartir, trocar opiniões, associar ou conferenciar, termina por funcionar sem maiores interferências ou objeções, construindo imagens de Iracema ora semelhantes ora completamente desvinculadas do texto original escrito por José de Alencar. Imagens benéficas ou não para o público, isso é uma questão que não vem ao caso – pelo menos agora.

O fenômeno comunicatico de transposição midiática investigado em nossos objetos de pesquisa deve ser entendido como um campo de problemas, na medida em que sua prática requer a superação da própria realidade. É justamente esse o objetivo da mudança de mídia de uma determinada obra. E o cinema faz muito bem este papel – ou muito mal, convenhamos. Permite-se aferir que, no elemento fílmico analisado, a preocupação com a imagem da personagem Iracema não é mais com o que é comunicado, ou seja, o conteúdo do livro propriamente, mas sim com a maneira com que se comunica a figura de Iracema e com o significado que essa comunicação tem para o ser humano.

Toda linguagem, inclusive a científica, tem uma dimensão tanto emotiva quanto cognitiva, isto é, transmite uma significação emocional. Cada palavra, por mais descritiva que pretenda ser, contém uma carga de emoção. E com a objetividade da linguagem cinematográfica, apresenta-se com uma roupagem de distância, ou em termos emocionais, de imparcialidade, o que não deve ser tomado como uma verdade. Só para tomarmos como nota, Alfredo Bosi relata que “Alencar foi antes um individualista que um homem voltado para a coisa pública”. Apesar de ser tachado de pouco vernáculo, Alencar traçou um quadro retrospectivo da sua ficção, onde se mostrava consciente de ter abraçado todas as grandes etapas da vida brasileira”, o que, de fato, comprova o intrometimento da “mão” do autor da produção ou do produto no significado final.

O meio de comunicação de massa (MCM) do tipo cinematográfico consegue atingir simultaneamente uma vasta audiência, num curto espaço de tempo, o que constrói um envolvimento de milhares de pessoas durante todo o processo. Essa audiência, além de ser heterogênea e geograficamente dispersa, é formada de membros anônimos para a fonte, mesmo que a mensagem, em função dos objetivos do emissor, ou da estratégia mercadológica do veículo, seja dirigida especificamente a uma determinada parcela do público, isto é, a um só sexo, a uma faixa etária, a um determinado grau de escolaridade. E não nos imprime dúvidas dizer que, diante de toda essa variação, a Iracema do filme de Carlos Coimbra não é mais a mesma idealizada pelo autor do romance.

No romance de Alencar, Iracema adquire uma atmosfera simbólica que beira a santidade e a fortaleza de um sentimento materno, até quando entrega seu segredo ao português Martim. Um Alencar “paisagista” desbrava espaços de expressividade mais sutis e menos decorativos quando retrata a virgem dos lábios de mel. Como diz Bosi, a natureza na Iracema de Alencar, “significa e revela”, pois “o mundo natural encarna as pressões anímicas”. A Iracema que fabricamos no inconsciente ao lermos o livro é de natureza sugestiva, e não objetiva, expositiva, denunciadora como a do filme. A Iracema em Alencar evoca uma realidade que é desfigurada no filme que, por sua vez, reproduz um teatro de sons e imagens aproximando-se de uma estética desvalorativa e semipornográfica. Brincando com a censura da época em que foi às bilheterias, numa ilusão vanguardista abocanhada por todos os produtores do que ficou conhecido como pornochanchada, a Iracema de Coimbra apenas envolve – com certa dificuldade – o espectador num mundo ficcional paralelo, numa outra realidade, conseguindo conduzir o público, numa linearidade indiferente, a uma decisão moral empobrecida por falta de elementos fundantes e estruturantes presentes no original.

Cultura de massa e indústria cultural são concepções ideológicas que proliferam no campo dos MCM. Mais democrática, a comunicação de massa liberta o homem na medida em que proporciona oportunidades, destruindo as antigas barreiras de classe, tradição e gosto, misturando e confundindo tudo, dissolvendo as distinções culturais. Proporciona diversão para as massas cansadas que compõem a força de trabalho. Proporcionam cultura para milhões de pessoas, permitindo ao homem médio dispor de uma riqueza de informações, nunca antes vista, divulgando obras culturais a preços muito baixos. Mas é bem aqui onde o perigo se esconde. Por desejar abarcar tanto território de uma só vez, o filme de Carlos Coimbra é extremamente conformista, encorajando uma visão pacífica e acrítica por parte da sociedade. Valoriza a informação mais “fácil” e entorpece a consciência histórica. Difunde uma cultura homogênea e segue as leis de um mercado que é cruel. E a fim de poupar esforço perante o entendimento das mensagens, constrói uma Iracema superficial, dotada de apelos sexuais facilmente distinguíveis, tanto quando utiliza ela da linguagem verbal quando dos seus gestos, vestimentas, ambientes e símbolos.

O nome Iracema antecedido por uma arara e com um “coração” funcionando como o pingo da letra “i”. O subtítulo que aparece todo em letras minúsculas, exceto a palavra “Virgem”, que é destacada, aparecendo em caixa alta. A hostilidade inicial da índia frente o “invasor” português. O pomposo “Uma mulher!”, primeira frase pronunciada no filme, dão indícios de que a imagem de Iracema que será retratada no decorrer do longa-metragem dialogará com a idéia de uma personagem selvagem, dotada de traços atraentes à libido masculina, afeita ao deleite dos sentidos e do gozo corporal. Não pretendemos, aqui, preconizar a idéia de que a produção de Coimbra possui ou não qualidades, tampouco julgar os méritos ou as falhas de Alencar Até porque, toda e qualquer obra de arte é “suscetível de reprodução” e “à mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local que se encontra”, como afirmou Walter Benjamin e, por conseguinte, uma cadeia flutuante de significados é concebida após sua degustação.

Autêntica ou não, o certo é que uma Iracema desgarrada brota na linguagem áudio-visual estudada, fortalecida também pela simbologia existente na escolha de Helena Ramos, símbolo sexual da década de 70 e atriz de outras pornochanchadas, para compor o papel da protagonista. Uma nova personagem que entra em conflito com a tradição e aura literária, distante léguas ou próxima o necessário para sobreviver ao tempo e ainda representar um testemunho histórico daquilo a que convencionamos chamar de obra de arte.


Referências:

SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1995.

COUTINHO, Afrânio. O Movimento romântico in: Introdução à literatura no Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

COUTINHO, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 39. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira : De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 7. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

Perdemos os dados das outras referências que usamos para compor este trabalho de pesquisa. Ficaremos em débito com você, leitor.

* Texto escrito por Germano Xavier e Karlos Lory. Preparatórios gerais para a apresentação do trabalho: Alessandra, Lucinete e Zuleide, todos estudantes do curso de Letras/Português e sua Literaturas, da Universidade de Pernambuco (UPE/Campus Petrolina).

Um comentário:

Yvana disse...

Muito interessante Germano, tive um professor de literatura que dizia assim: Como pode ter havido uma Iracema dos lábios de mel, sem escovar os dentes, kkkk, como poderia uma mulher ficar muitas luas sangrando a espera do seu amado? é a magia da literatura que o cinema não mostrara.