sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Pierre Verger (uma impressão)


Por Germano Xavier

O caráter etnográfico, em Verger, elucida e torna-se uma maneira de encontrar e reencontrar o outro. Talvez seja essa a razão para legitimar a idéia de que seus retratos ganham em vida e dramaticidade, como se estivessem a indagar os mistérios e arcanos daquela vida retratada. E as fotografias de praças, com enquadramentos próximos e/ou semelhantes, num ângulo oblíquo vão dando uma noção de diferença cultural. Também por meio da fotografia, vai descortinando espaços sagrados, privados, para iniciados, de religiões e poderes. Verger foi um dos primazes artistas da fotografia a deveras romper com os signos e modelos etnográficos de registro fotográficos, mormente aqui no Brasil.

Em sua obra, Verger possibilitou a visão acerca de que as culturas africanas zelaram e reconstruíram o Novo Mundo, isso nas mais diversificadas acepções ligadas a manifestações culturais e religiosas, arte de viver, ou seja, em toda a extensão de uma devida concepção do meio, do mundo e dos viveres unidos às temáticas do colonialismo e da escravidão que o tempo não conseguiu destruir.

Paulatinamente, com a apresentação de suas fotos, Pierre Verger acaba revelando uma Bahia a uma África, e também a sua unicidade idiossincrática, num encontrar mútuo e contínuo de gentes, religiões, presente e passado, homens e santos, fiéis e mundanos. Suas fotografias transportam imagens de um mundo a outro. Com isso, suas arquiteturas imagéticas acabaram por ir para além da camada superficial da imagem, das suas curvas formais e se agruparam justamente pelo fator da experiência vivida, pelos gestos do quotidiano, pelos nomes dos ancestrais, pelos tons e pelas suas significâncias.

Este fato talvez torne mais intrigante e prazeroso conhecer a produção de Verger. Pois, pode-se criar a hipotética idéia de que ele realmente edificou lentamente uma fotografia imbricada de um humanismo, em que a vivência e constante troca com o estrangeiro, com o outro, descobre e escancara um jeito melhor de saber das individualidades. A obra de Verger ajudou a esculpir um fotógrafo de compaixão com os olhares do mundo.

A partir do início de sua prática, “o artista das imagens baianas” se colocou na contramão das modelagens fotográficas e ‘’científicas’’ do outro ator social. Suas imagens revelam o olhar quente, não mostram o olhar classificador da antropologia da época, que desmonta e distancia o sujeito da sua condição de existência humana, reduzindo-o ao mero estatuto biológico ou à sua “primata” luz.

O espectador entra em diálogo com sua própria humanidade dividida: homens sempre singulares e sempre semelhantes. Verger possibilita a visão de uma alteridade enriquecedora e ‘’assimilável’’. Não existe uma representação de distanciamento do outro. Tudo acontece junto, e para perto, sempre. Existe uma tentativa que tende à aproximação, de torná-lo mais próximo, em tudo.

Verger testemunha uma transcendência profunda em relação ao sujeito fotografado. As personagens surgem com as suas singularidades individuais irredutíveis. Cada um é uma potestade, um potencial nato. Por vezes, as imagens primam pela beleza plástica de um indivíduo. O sujeito pré-existe e vive por ele mesmo, não é, ele, o representante impessoal de sua cultura. O olhar do colonizador diante do colonizado é também destituído e desprezado nas suas fotografias, que não favorecem conotações pitorescas, complacentes ou extravagantes.

Verger também renovou o olhar eurocêntrico perante o homem de negra cor. Não é mais um olhar de homem branco sobre negros, mas um olhar transformador de um ser humano sobre outros, essencialmente natural. O fotógrafo lutou pela defesa dos valores sociais e ligados às religiões politeístas, sempre privilegiando a resistência e a adaptação das culturas negras.

A cada novo olhar, as fotografias suscitam surpresa e alegria. A fotografia possibilita a aproximação emocional dos membros de um mesmo universo cultural variado. A receptividade e o impacto visual das fotografias de Verger encontram ressonância na cultura baseada na oralidade. Pierre foi também etnógrafo e historiador. Desenvolveu a sua missão de arauto cultural entre a África e o Novo Mundo, tendo a fotografia como um canal para facilitar o contato entre os homens.

As imagens reveladas, propostas e divididas com o mundo, permitem tecer ligações e aproximar os africanos e os membros da diáspora, integrantes da mesma família cultural que viviam afastados e sem notícias uns dos outros. Ele observa também fotos do candomblé, temática abundante em Verger, e diz simbolicamente aos africanos que seus descendentes brasileiros celebram os mesmos hábitos e divindades.

Verger nasceu em Paris, no dia 4 de novembro de 1902. Veio ao mundo como filho de uma abastada família de origem belga e alemã. Chegou à Bahia em Agosto de 1946 e, a partir dessa data, dedicou sua vida ao estudo da imensidão da relação existente entre a África e a Bahia. Faleceu em 11 de fevereiro de 1996.

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