segunda-feira, 4 de março de 2013

Outra carta


Por Germano Xavier

Clack, Caio, e mais uma noite sozinho.


Estou olhando para os lados agora. Um agora que começou bem cedo, matina de arrefecer moléstias. Direita e esquerda, bombordo e estibordo, norte e sul. Onde as escotilhas? Os lemes? Os mastros e as velas? O capitão... o marinheiro. Mar... tão oceano o mar da vida! Todas as coordenadas revistas no mapa do meu coração. Meu coração. Os dados que dele extraio expressam qualquer posição horizontal ou vertical ao fim de um tempo tardio. Se eu dissesse a você que eu estou perdido e desnorteado, o que você pensaria de mim? Fincaria em seu pensamento a impávida suposição de que atualmente ando gostando muito de clichês e que, por consequência disso, estou a me transformar num homem-clichê, num ambulante sem préstimo algum, igual a todos? Eu que tanto soube dar indícios de que seria eu o novo gênio das revoluções internas, manipulador dos sentidos mais puros, que saberia controlar as declinações mais sentimentais e acabaria sendo aquele que lota o cemitério na morte. Eu estou triste porque você não pode me ver agora, assim desse jeito, mendigando a cor de um sorriso, porque há estes impedimentos que fazem de nós duas meras conchas marinhas, moluscos ignotos. É uma pena tanto mar tanto azul tanta luz noturna dentro do meu quarto ou mesmo lá fora, recortando toda sombra que embaça. Você veio tão linda com aquele vestidinho de flores amarelo, com aquele rubor facial que tanto admiro, com o cigarro preso entre os dedos e o tempo era tão do instante entregue que eu mesmo esqueci de alinhar os ponteiros. Era um tempo sem tempo, tempo-temporal. Ainda está aqui o relógio velho da minha avó, que você adotou como amor-objeto da casa. Leste e um espelho não me distrai, tão ácido o espelho com a minha face de tristeza. Oeste e as cortinas pesadas do acúmulo e a poeira agora não baixa. Norte e a televisão informando meus vultos, meus eus-tão-outros, que deslocados do meu corpo oco acreditaram ser possível a reencarnação e até eles, amor, até eles partiram! O sul é sempre a mesma névoa paralítica espetando a mim os dizeres sem razão. Tantas são as cadeias de brumas que me encobrem o ar bom e eu me sinto tão triste agora, olhando para os lados. Tenho vontade de não aparecer no seu aniversário. Aqui dentro eu já não sei se sou tão forte assim. Tudo fraquejou, as mãos braços pernas pés joelhos cotovelos artelhos. Sou homem sem som mergulhado no barulho mais aterrorizante. E minha sorte, álgebra parada no meio-fio da vida, abandonou o barco. A coragem é artifício para quem tem verdade, para quem entende os pássaros, não para um pobre coitado diminuído ao óbito veemente da voz. Eu estou olhando para os lados, solto e doído, olhando para os lados. Tão improvável é a fogueira em terra de gente bárbara. Linha sem a costura que une, tecido entrecortado pela imperfeição. Você vai pensar, sim, eu sei, que ah como você é estúpido e ingênuo!, e vai me chamar de criança e vociferar aconselhando-me a estancar esta dedicação exagerada depositada confiantemente em você como única e derradeira solução para a minha alma pálida. E eu vou repetir sempre que se não for isso eu não sei o que mais será, porque só pode ser isso, só tem de ser isso, este amor doente e tão comum, amor que todo mundo tem e que é amor único porque é o meu amor seu. Esquemão tão batido e você pensando em sair de vez. E acabar comigo de vez. Porque só assim você percebe domínio e sua alteração mais transformadora é sempre o exílio suficiente. Mas bem me lembro que fomos muito felizes, aquela coisa de eternidade e olhar estrelas e pensar e pensar e pensar. Agir agir agir. Atarefados para com o amor, em débito sagrado e profano, comendo-nos. E ver que você preferiu este acidente idiota a meu querer sestroso me enfia tanta faca tanta lâmina tanta dor pelas entradas do corpo. A tua queda derrubou meus muros e eu estou triste, olhando dulcificamente para a hora dos lados. Esquerda e nada, à direita volteio meu desastre de existir tanto. Coisa de não se aguentar mais. Coisa de não se suportar mais. Saber que existo e que sou tão imenso em minha existência é o mal maior. Eu não vou mais ao teu aniversário e daqui deixo meu nenhum-abraço. Amanhã quem sabe eu posso mudar de ideia, e me desbrutalizar, e me desautorizar de mim mesmo, fazer tuas vontades de novo ou simplesmente pegar a estrada. E você. E que seja para matar qualquer um de nós, os dois. Tomemos a parte que nos cabe e sejamos livres de todo pecado de não amar. Eu estou muito triste agora e os lados são estradas após pularmos os muros, quebrarmos as paredes, destelharmos os telhados. Você sempre soube que o amor só existiu entre nós e que o mundo fosse para a fossa. Meu minuto displicente de alegria é este de imaginar você distante e a desnecessária agonia de proferir todas as palavras diante de tua face. Alegria saber que esta carta só existe agora, dentro da minha imaginação, dentro deste segundo. Que ela é um exercício morto de uma estratégia de ataque que jamais existirá. Que tudo não passa de fabulação e mistério, jogo de dar sem receber, afeto de não. Esta é a mentira que quero lhe presentear, a de que não te amo como você pensa. A falsa retórica de se elaborar ruínas. Oratória feita de futilidades. Que agora, gramados arredios penteados pelo alísio, a derrotada verdade haverá em seguida de se ruflar pelos tímpanos-olhos. Pobrezinho, tão maculado pelas injustiças, só queria o bem... ah, pobrezinho, você diria. Desafortunada sina a de amar sem limite, doador de órgãos, de sangue e de ossos. Direita e esquerda, bombordo e estibordo, leste e oeste. Rosa-dos-ventos, astrolábio, bússula, constelação do Cruzeiro do Sul, lua lua lua. Tão nua lua. Tão nu de tu, sem tu, este meu débil desassossego...

Nenhum comentário: