sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Leituras


Por Germano Xavier

Para começo de conversa, é preciso salientar que o poeta Gregório de Matos tinha absurda e considerável ciência acerca do que produzia. É necessário uma boa dose de vivência para que um determinado escrito consiga elevar-se como obra e conquistar outras dimensões de significação e representatividade. Ele, o "Boca de Brasa", é um retrato fiel da idéia de que a vida imita a arte, ou o inverso. Gregório viveu, comeu e bebeu do seu tempo. Para Alfredo Bosi¹, o bardo "é mais do que uma figura e um autor porque retrata, sob muitos aspectos, e tipifica, em quase toda a sua obra, o meio e o tempo". E quando voltamos o nosso olhar à retratação da figura feminil em sua obra, cuja autoria é ainda bastante polemizada, não acontece de modo discrepante. Analisando os poemas propostos para o devido estudo ("RETIRA-SE DESDENHOSA DO POETA PARA HUM SOLDADO DE CUPIDO A TEMPO, QUE ELLE FAZIA O MESMO COM ANNICA" e "EPITAFIO À MESMA BELLEZA SEPULTADA"), percebe-se claramente um posicionamento ideológico baseado em extremismos. De um lado, a visão essencialmente preconceituosa da mulher negra - diante da questão, Gregório não titubeia, e escreve com a inicial maiúscula o termo "mulata". O destinamento e a evidência de um racismo é por demais escancarado. O poema tem como enredo, se assim pode-se aferir, um troca-troca envolvendo duas mulheres e dois homens. As mulheres, aqui, são negras e vêem-se traduzidas à míseras mercadorias ou produtos de negociação. O poema primeiro se desenvolve, do início ao fim, numa atmosfera densa, marcada por uma tensão que envolve os paradigmas do "ter", do "poder" e, mormente, da eternidade das relações humanas. Comparado ao segundo poema, este apresenta-se totalmente encaminhado sobre um território ameno, livre de aturdimentos e tensões, fluido e mais contemplativo, uma vez que o seu destinatário é uma mulher de pele alva, portanto digna1 dos mais altos congraçamentos. O poema expõe uma linguagem mais coloquial, chegando a beirar a vulgaridade, aproximando-se de um erotismo encadeado por expressões e jogos de palavras por demais singulares. Para corroborar da idéia de aproximação do que é popular através do uso de uma linguagem diferenciada, Bosi² vai dizer que "não menos interessante é o estudo da contribuição de Gregório de Matos para a aproximação entre a linguagem literária e a linguagem popular, pela maneira como introduziu em suas composições não só palavras até então proibidas ou vedadas ou mal-aceitas como expressões de uso comum". Dedicado à Dona Ângela, a comparação elogiosa concebe à personagem um caráter de gigantismo e de inesgotável estima. D. Ângela, mesmo morta, é possuidora de uma beleza quase inefável. Aqui, a dualidade temática "vida X morte" faz-se demasiado presente. Eis, pois, poemas comprimidos em antagonismos, dum poeta-marco do Barroco, que pouco soube fingir a inverosimilhança das relações, das coisas e do mundo do e no seu tempo. Já no poema árcade "VI", de Cláudio Manoel da Costa, o homem consegue, após consideráveis embates, encontrar-se. E é a natureza, o ambiente bucólico, o fator que ilumina o ser. Nela, sendo-a e estando inteiramente entregue a ela, o homem encontra a necessária paz e a vida harmoniosa, pautada numa lida ponderada, racional, sem aflições. Já no poema barroco "AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO", o humano confunde-se com a própria parte e o próprio todo conflituoso. O linguajar, o modo como a palavra e a imagem são confeccionadas transforma-se em mais um entrave para a compreensão, impedindo o suave transcorrer da leitura por parte do leitor. E assim vamos...

1- P. 86/ 2- P.87
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo. Cultrix, 1970 – 44ª ed., 2007.

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