segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O chão do amor


Por Germano Xavier

- Velha infame – disse a mulher.

O homem abaixou o portão da garagem, trancou com chaves as duas portinholas que funcionavam tal qual um olho-mágico, olhou a caixa de correspondências, viu que nada havia lá dentro, fechou. Percebeu que o gramado da área frontal estava precisando de mais adubo, pensou em amanhã e se queixou:

- Também não foi meu dia hoje.

O homem, garboso em seu terno xadrez, sapato bico fino, legítimo couro, chegou à porta que dava para o interior da sala de estar. A mulher o esperava com respiração arfante, só ele poderia abrir. Aparentando nervosismo, ela fazia um movimento de ir-e-vir com uma das pernas inclinando calcanhar e pé sobre os dedos, de modo que muito lembrava uma bailarina quando esta se eriça rodopiando na ponta dos artelhos dos membros inferiores. O homem era jovem, branco-aloirado, traços escandinavos. Um lenço de cor sóbria lhe adereçava a lapela, tinha o colete em perfeita combinação de tons com o restante da vestimenta, gravata cinza. Tudo muito bem ajustadinho, apertado, como se uma costureira tivesse tirado suas medidas e feito a amarradura das linhas no calor das próprias mãos.

A mulher foi à pequena mesa-bar e encheu um copo com conhaque, o homem observou sua face irritadiça, e do mesmo modo a mecha cacheada de cabelos negros que lhe encobriam o olho esquerdo como um tapete de plumas acariciando-lhe a pela macia. O homem falou algo sobre o seu colega de escritório e percebeu-se vencido pela tentação despertada pelo rastro de perfume deixado pela mulher na extensão do cômodo.

A esta altura, qualquer um que adentrasse no local teria percebido o cenho modificado do homem, a cor rosácea sanguínea preenchendo seus contornos, provavelmente liberada por estímulos ulteriores. Atingido de tal forma, pôs a aproximar-se da mulher que bebia, soluçando de raiva. Tocou o ombro, imprimindo-lhe uma pressão para que ela se voltasse à direção em que estava agora. O homem lhe sorriu com uma suavidade rigorosa.

Mais de um quarto de hora já se passava quando o homem, afrouxando os botões do terno, resolveu sentar, num momento de só pensamento, copo de conhaque seguro pelas duas mãos apoiadas no joelho. Chateado, desconfortavelmente perdido em suas idéias, fitou languidamente um fio de cabelo da mulher preso ao carpete, sob a mesinha de centro.

- Sente-se aqui – falou, fazendo sinal com a cabeça.

- Aquela velha desgraçada.

- Calma, você tá tão linda hoje.

A mulher encostou o rosto no ombro do homem, tinha tensão no canto dos olhos e no queixo, não podia disfarçar. Morena-clara, trejeitos indiáticos, corpulenta, propícia para os lampejos maternais. Ficou ali respirando um ar confuso, imaginando mil coisas, parada, dando pequenos goles no líquido alcoólico.

- Quase perdemos tudo - rompeu a voz da mulher o curto silêncio que ali se instalara.

- Não diga isso.

- É porque você não viu como a expressão do rosto daquela velha mudou hoje.

O homem a abraçou, mesmo estando meio torto no sofá.

- Nem olhou na minha cara.

- Tem gente que é mesmo muito desconfiado.

- Não consigo tirar isso da cabeça. Amanhã ela vai ter comigo quando aparecer no escritório. Não vou deixar isso barato – disse, engolindo de uma só vez o conteúdo do copo.

O homem pensou no dia atribulado, mas não deferiu nenhuma palavra. Antes que a mulher lhe dirigisse mais descontentamentos, o homem aplicou um beijo longo na boca carnuda da mulher.

- Mas ela não perde por esperar – disse ela, no justo instante em que descolaram os lábios -, jogo até praga se preciso for. Aí ela nunca mais inventa de vender um terreno assim, tão sem querer, tão sem vontade.

A mulher olhou em torno, novamente pousou as vistas na mesa-bar. Foi buscar mais conhaque. Já estava amolecida com o efeito provocado pelo primeiro copo. Copo cheio dessa vez, transbordando.

- O estagiário errou um cálculo de área e por pouco não perco o emprego.

- Me dá um beijo – sussurrou a mulher, malemolente -, me faça esquecer aquela velha louca.

- Dou sim.

- Me ame.

- Vem, meu bem...

O homem pôs o copo sobre a mesinha de centro e abraçou a mulher antes mesmo de ela chegar ao sofá.

- Ponha o copo junto ao meu.

- Desgraçada! Bandida! – exclamou a mulher, enlaçando-se nos braços do homem.

Estavam embebidos num ar confortável de delírio e ira, ambos compenetrados nos acontecimentos do dia, nos desenredos do trabalho, nos descompassos dos trâmites morais e de negócios. Não conseguiam amenizar a cólera, tampouco desfazê-la totalmente. O homem a olhou nos olhos, puxou-a pelas mãos e foram em direção ao quarto.

- Eu te amo.

- Por que não tira a minha roupa? – bramiu a mulher, jogando-se de bruços no colchão.

- Confessa que estamos bem, amor, me sinto tão bem com você.

- Estamos.

- Se não fosse as desavenças lá na empresa, eu diria sem medo que hoje foi um dia perfeito. Teu cheiro...

- Alguém deve ter enchido a cabeça dela de caraminholas pra ter pensado em desistir da venda – disse a mulher, passando a mão libidinosamente sobre a calça do homem, na altura do pênis.

- Tenho quase certeza disso. Deu conta de que pediu muito pouco por terreno tão bom. É uma espécie de arrependimento sufocante, que fere ambas as consciências, tanto a de quem compra quanto a de quem comercializa. Lembro de muitos casos assim. Não seremos os últimos.

A mulher descerrou o zíper da calça do homem, tirou da casa o botão e arriou-a. Passeou a face por toda a coxa direita dele, com a bochecha roçando os pêlos macios próximos à virilha. Sentiu o membro ganhar forma e atacar a barreira da cueca. Naufragava em calores úmidos, descidos desde o couro cabeludo até sua panturrilha. Silenciosa, ébria, apalpou o membro do homem com uma das mãos, quase deitada sobre a cama, num esforço tripudiado pelas lembranças castrantes do afetado dia.

- Porra de mulher!

- Amanhã você vai ao fórum e pega a assinatura com o velho Gomes. Aí tudo se resolve. E vê se não olha pra cara deslavada dela novamente – vociferou o homem, já tomado pelas pulsões do sexo febril.

- Hoje fiquei sabendo que ele está caduco, não sei se vai conseguir assinar o documento.

- Ele está vivo, é o que importa. Não aceite nem as digitais. Faça com que ele assine nem que for com a ajuda de alguém. A letra é a melhor prova. Dispensa até as testemunhas – completou, olhando para baixo e vendo a mulher lamber seu pênis, colocando-o inteiro na boca, enquanto atravessava seu corpo grande por cima do seu.

- Parecia até que estava com raiva de mim, como se fosse eu que tivesse feito a besteira de vender o terreno a preço de banana.

- Penso que ela não fez nenhuma consulta antes.

- Ah, Ah... – gemeu a mulher.

Estavam os dois deitados. Tórax sobre tórax. A mulher em cima, fazendo movimentos lentos. Começavam a suar. O ar no quarto tornara-se abafado, um pequeno espelho na cabeceira da cama iniciou uma espécie de embaçamento. Amavam-se, indubitavelmente. Loucamente, desmedidamente, ferozmente. Mas os olhos abertos dos dois provocavam um ruído na engrenagem natural das horas. Era como se não suspeitassem de que estavam ali, um dentro do outro, em escavações corpóreas e fabricando rituais de dança. Os olhos, vivos como nunca, emprestavam àquela transa um sentimento de completa estranheza. Estariam cegos? Presos às amarras do cotidiano? Encaçapados no duro jogo da vida?

- Vou preparada amanhã – disse a mulher, saltando ininterruptamente sobre o homem, devidamente atenta para que o pênis dele não tomasse outro caminho senão o do interior de sua vagina.

- A melhor defesa é o ataque, já diz o ditado.

- Humm, humm... – gemia a mulher, baixinho, agora recostada no abdômen do homem -, a gente bem que poderia ter um filho. Mas sem aquele terreno, sem a nossa própria casa, fica inviável.

O homem explodiu em gozo, regou com o branco leite seminal todo o órgão feminino. A mulher tombou para o lado, ainda nele enroscada. Inspiravam e expiravam sofregamente. Tinham os aspectos faciais bons, aparentavam felicidade. Há muito tempo não sentiam tanto desejo como naquele momento. O casamento partia para o sétimo ano e parecia que a casa em que viviam de aluguel estava impregnada de uma monotonia aterradora. O amor começava a ser tratado como um fator opcional, coisa de domingo, quando não se tem nada por fazer e o tédio massacra. Um edredom aveludado fazia-se de roupa de cama. A cor creme das paredes trazia um pouco de paz aos olhos dos dois, esgotados pelo dia estafante.

- Te amo.

O homem voltou-se.

- Nos amamos muito, não?

A mulher meteu-se a levantar, indo de pronto à sala. Encheu mais um copo com bebida, agora vodka, e consigo mesma disse:

- Nem que eu mate a sua mãe, amor, mas aquela terra amanhã será nossa.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Folhas by ~martindavila"
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