sexta-feira, 23 de abril de 2010

Um texto boliviano, solamente


Por Germano Xavier

Na verdade, um texto boliviano e preconceituoso, feito de verdades desmistificadas
e regado à "Tabacaria", de Fernando Pessoa.


Quase 4 horas da manhã e o homem da história encontra-se num dos quartos do Hotel España, próximo ao ponto de táxi que tem por origem a localidade de Montero, numa rua adjacente a calle Cañotto, uma das avenidas principais que corta o primeiro anel da cidade de Santa Cruz de La Sierra, no centro da Bolívia. O homem está pensativo, não consegue fechar os olhos. Olha intensamente para o ventilador de teto que gira lento enquanto faz perguntas incontornáveis a si mesmo. A mulher da história tenta dormir ao seu lado, na cama de casal estranha. Ele levanta várias vezes, e deita várias vezes também. Olha da janela a pequena praça quase abandonada de luzes. Enxerga um pequeno homem adormecido num banco solitário. O vento balança a copa das árvores, há um silêncio inquiridor no barulho que adormece. O homem da história visita os quatro cantos do cômodo e vê as malas jogadas e abertas calarem-se diante do destino feito de impulsos. A rota fora feita e lá estavam os dois, o homem e a mulher da história.

A cidade parece estar calma. Do aeroporto ao hotel, foram poucas luzes, ruas estreitas, avenidas sem gente, viadutos em construção, caminhos mudos. O táxi era velho, uma perua Toyota daquelas em que os retrovisores ficam próximos aos faróis, certamente da década de 80. O carro cheirava a sujeira e a gás. O motorista acendeu um cigarro e fez pouco do tempo novidadeiro em que os dois navegavam naquele momento - o homem e a mulher da história. Havia mais um homem dentro do velho táxi, conhecido da mulher da história. Tatuagem no braço, conversa de andarilho de mundos e fundos, jeito duvidoso. Foi contando coisas sem serventia para a vida durante todo o percurso e no final avisou que levaria o homem e a mulher da história para conhecer a UDABOL (Universidade de Aquino da Bolívia) no outro dia, bem cedo. Mas os dois estavam no hotel, dormindo na companhia de pequenas baratas bolivianas que adoram um umbral de porta de banheiro. O silêncio não era silencioso.

Os dois acordaram cedo e foram ao encontro do mesmo táxi do dia anterior. Nada do motorista boliviano. Esperaram sentados em frente a uma estação antiga de rádio, onde se via um homem a pronunciar frases esquisitas por um rádio do tipo amador, como querendo fazer contato com algo ou alguém muito distante. A espera prosseguiu por horas a fio, quando os dois resolveram andar um pouco para procurar algum estabelecimento onde se pudesse fazer o desjejum. Foram na direção do centro, sem saber, compraram água, que tomaram no caminho, e voltaram ainda com fome nas barrigas. Foi quando passou um vendedor de amendoim enrolado em saquinhos e um tipo de semente tostada cujo nome não souberam decifrar. A mulher da história comprou o saquinho com as sementes e experimentaram, os dois. A semente tostada tinha gosto de semente tostada. Fome, de bocas e de corações.

O velho táxi chega em meio aos gritos de “Montero, Montero!”, dados pelos taxistas da área. O calor era “caliente”, como se diz por lá. Sufocante no centro da cidade. Passamos para o terceiro anel – a cidade de Santa Cruz de La Sierra está construída na forma de 5 anéis, cortados por uma avenida-mestre – e logo chegamos ao apartamento onde o segundo homem da história residia, o tatuado sem pinta de estudante que acompanhou os dois desde o desembarque no aeroporto internacional de Viro-Viro. Algumas quadras e lá estavam os dois, ou melhor, os três, diante da bela e tão “sonhada” e “barata” faculdade de medicina boliviana. Antes passaram numa lanchonete e comeram um bolinho de nome salteña, com batata e frango dentro, de gosto duvidoso. O homem da história desgostou da guloseima e pediu um pão mesmo com queijo quente. Depois entraram na faculdade UDABOL e como tudo era tão lindo e maravilhoso!

Os dois andaram pelos corredores, entraram em portas, conversaram e ouviram em castelhano, deslumbraram-se com o tamanho das coisas e bonitezas estrangeiras num país miseravelmente abandonado pelo restante do mundo. O homem da história começou a duvidar de dúvidas já existentes. Alguma coisa devia estar errada. Que contraste!, pensou. Um Hummer H2, no valor que passa de 1 milhão em moeda brasileira, estacionado na frente da universidade, e um país que se movimenta em microônibus do tempo das nossas avós. Laboratórios, saguões, biblioteca, sala de apoio aos estudantes estrangeiros e estudantes de medicina, tudo visto e visitado. A hora da aula de anatomia estava próxima. Uma expectativa imensa e um rolo compressor...

Estudantes de medicina do primeiro semestre esperam alguém vir abrir a porta da sala de aula. Atraso de mais de meia hora. O professor que não chega. Quase ninguém com cara de estudante. Quase ninguém com cara de nada. E o homem da história no meio de tudo, no tudo do meio. O homem da história revisa e visa tudo e todos, parece não estar se sentindo à vontade. O jovem professor chega de preto nas vestimentas. Toma uma espécie de chá e vomita uma curta aula sobre a primeira vértebra cervical. A aula de anatomia estava dada. Em dez minutos, o homem e a mulher da história deveriam se endereçar ao laboratório para a aula prática. O que deveria ser 10 minutos de espera vira mais de uma hora inteira. O professor chega, distribui ossos para a turma, agora fracionada em três, recolhe dinheiro dos livros que ele mesmo editou e vendeu-empurrou aos alunos, corrige alguns exercícios (chamados repasses) e se vai. Os estudantes de medicina estudam medicina sozinhos no laboratório-açougue da UDABOL. A cena choca o homem da história. Tudo não era mais tão lindo nem tão maravilhoso assim...

O estudante brasileiro de medicina típico da UDABOL usa shorts coloridos, com flores como estampas, geralmente são tatuados, usam óculos escuros, estão sempre fumando e falando asneiras. Meninas brasileiras estudantes de medicina na UDABOL passeiam com suas caras da festa do dia anterior, desfilando seus shorts justinhos, suas blusas decotadas e parcos materiais de estudo. Parece haver uma disciplina da grade escolar chamada “Zueira”. O homem da história que pensava estudar medicina na Bolívia não encontrou medicina na faculdade de medicina. O homem da história volta ao hotel, toma um banho e não consegue dormir. Talvez um “pollo a la brasa” sem “plátano” no outro dia resolva...

A mulher da história desaparece da história neste momento por vontade do homem da história. Ele não quer mais interferir nos caminhos da mulher da história e passa a contar somente a história de sua própria história. Nem dois “pollos a la brasa” foram capazes de amenizar a doente alma do homem da história, tamanha a inquietude dentro do seu ser.

Coca cola, sorvete, pão integral e queijo, nada, nada... o homem da história conhecera o inferno dentro de si mesmo. Buscara saídas em todas as coisas e não via portas. O povo pobre da Bolívia lhe atingindo as vistas trôpegas, tão educados e tão esquecidos pelo governo. Pena lhe dava, compaixão ao ver os nativos jogados nas ruas, sem perspectivas. O homem da história havia decidido. Lá não haveria de ser o seu lugar.

O homem da história dormiu certo do que iria fazer. Voltaria ao Brasil o quanto antes. E assim sucedeu. Madrugada na Bolívia e uma ilusão desvendada. A cortina aberta de um teatro de mamulengos desesperados, inclusive ele. Mas ainda lhe havia um tostão de ética e razão enraizada em seu âmago. Abandonou o barco furado no meio do ciclone. Não acenou uma despedida, mas encontrou a paz dentro do avião. Um cheiro de saudade lhe saltou do olfato. Quis o aconchego dos ventos, pois somente eles...

Novamente o ar do país de nascimento. Certezas aprimoradas. Nuvens brancas no céu. Dúvidas solucionando-se na mente. Pés pisados em ovos agora mais leves. O corpo mais leve. A cabeça tranqüila. Nada melhor que um pensamento sem grilhões, pensou.

Seria trágico se não fosse cômico. Mas o homem da história era eu. A própria história do homem da história era a minha própria história de mim mesmo. O homem da história abandonou o naufrágio no começo para não morrer afogado no fim da história. E depois de chegado, abandonou outros barcos furados, para se sentir à vontade remando à vela na companhia de seus velhos e bons ventos pastores...

Doa a quem doer, minha opinião é curta e grossa: não perca seu tempo sonhando em cursar medicina na Bolívia ou em nenhum outro país estrangeiro. Estude para fazer o curso aqui mesmo no Brasil, por muitos motivos. A experiência que tive serviu para eu me encontrar dentro de mim mesmo, para ter uma conversa de mim para comigo. Desisto de ser quem não quero ser e quem nunca quis ser para ser o que quero ser e o que sempre quis ser. Adeus, medicina! Adeus, odontologia! Que venham as Letras e o Jornalismo! Que venham os conheceres profundos, nada técnicos, da arte e da alma humana! Avante, bucaneiros...

Apenas um menino de Iraquara

Por Germano Xavier


Para o pequeno Pedro Henrique, meu mais novo "amigão".


Por que ser adulto é tão chato assim? Eu não entendo e parece que nunca vou entender porque mudamos tanto de uma hora para outra. Sabe, no fundo, bem lá no fundo mesmo, eu não queria que aquele garotinho recluso, inventivo e irrequieto, dono de uma arraia enorme e que nunca planou no ar por falta de ventos mais fortes, ficasse assim sem jeito, mais que encabulado, macambúzio até, apagado aqui dentro de mim.

Aqui dentro, mas é bem dentro mesmo, eu queria que aquele “menininininininininininininininho”, como sempre escrevia em seu caderno, consertador de coisas, continuasse a consertar as coisas para minutos depois desconsertá-las, e para novamente consertá-las... Que bom mesmo é ser inventador de invenções, construidor de planetas, afetador de águas paralíticas, fazedor de diversidades.

É, bom seria!

Mas tem uma coisa que atrapalha, e é o pior de tudo. É que existe uma palavra cruel no manual do homem. A palavra “Tempo”. Você já reparou que essa palavra não larga do nosso pé?! Acredito que sim, não é? Por onde quer que andemos, faça sol ou faça chuva, esteja frio ou calor, seja noite ou dia, lá está o Tempo, implacável, impenetrável, pendurado numa parede, atado ao pulso, movido por um pêndulo, ecoando um tic-tac eterno, calculando as horas, cronometrando os passos, registrando os fatos... Não adianta fugir, ele estará lá, sempre. Até onde você menos esperar, lá estará ele, o Tempo, senhor da vida.

Não que ser adulto ou agir como adulto não seja interessante, mas é que ser criança é muito melhor, anos-luz melhor, e você sabe muito bem disso. Ser adulto é como ter uma inflamação em alguma parte do nosso organismo, é como se uma coisa esquisita quisesse explodir, pular para fora da gente o tempo todo. É a “adultite”, inflamação do nosso lado adulto. Neste caso, é a nossa criança interna que está doida para romper a barreira do corpo e já sair escorregando num carrinho de rolimã ladeira abaixo, rindo aos quatro cantos da Terra. A adultite é fogo, tem casos que nem um divã consegue dar jeito.

Lembra aí, vai! Tente recordar de como era mesmo fantástico ser gente miúda, dono de dente de leite, jogando sonhos para São Longuinho no telhado de casa, e mesmo assim correndo corredores coloridos sem ainda nem poder por causa do sangue vivo na boca. Lembra do pé de umbu que a gente escalava nas tardes calorentas nos roçados da vovozada, das mangas verdes com sal que a gente comia preocupado em não ingerir leite depois, porque nossa mãe dizia que fazia mal e a gente não queria nem fazer o teste para ver se era verdade ou não. Das brincadeiras em cima do monte de areia deixado pelo caminhão da empresa de material de construção quando o pai resolvia reformar a casa. Era tanta alegria, não lembra? E era tão instantânea e espontânea que o Tempo era o que menos importava pra gente. A gente queria mesmo era o pé encardido de brincar na terra vermelha, o grude no rosto de tanto suor bom, a nódoa na camisa novinha em folha de tanto se lambuzar de alegria, as unhas pretas de tanto cirandar de felicidade...

Ah, como era bom e a gente não sabia!

Dizíamos dizeres errados e ninguém da nossa turma nos lembrava das tais formalidades oracionais... Que gramática boa mesmo era a gramática da rua, profanada no calor da partida de futebol improvisada, com traves feitas de chinelos velhos e sujos e jogado com bola murcha de tanto quicar nos paralelepípedos das ruas de Iraquara. Que tese boa mesmo era a de que depois de um dia de alegria e de dedo topado no calçamento de brincar de esconde-esconde, sempre haveria de nascer um outro dia ainda de mais sorriso na face estampado.

Quando se é criança, a gente vive o sonho e sonha a vida. A vida passa como passa a formiguinha no quintal de casa, serelepe, levando risonha a folhinha verde para dentro do formigueiro. É sempre dia de festa, nas chegadas e nas partidas. O fim das coisas é sempre um recomeço e não há espaço para a tristeza nem para a solidão. A gente conseguia ficar feliz até quando não havia ninguém por perto – e por vezes era bem melhor assim, concorda?

Fui menino em Iraquara e a meninice é um tempo verde, que flutua como flutuava a bolha de sabão que a gente soprava com galho de pé de mamão. Um tempo sem tempo, temperado com as mais doces especiarias, as mais raras e as mais preciosas. Um tempo destemperado por vida, liberto de amarras, tempestuoso para o bem. Porém um tempo temporada, com dia marcado para terminar. Um tempo temporal, chuviscado, torrente, toró, que infelizmente acaba. Porque logo a gente sente o peso das responsabilidades, a carga das tarefas banais, a dor na consciência pelos tempos perdidos e que, desditosamente, não voltam mais.

Ah, como era bom não ter o pesar do tempo deixado para trás!

Como era bom andar de bicicleta sem medo até o Vai-Quem-Quer¹, chegar perto das serras da Chapada Diamantina, beirar o céu lá do alto, visitar o Engenho de “seu” Sinésio na entrada da cidadezinha, tomar banho nas cachoeirinhas da Caiçara, fingir que éramos desbravadores do mundo, bandeirantes infantes sem medo do pneu da velha bicicleta furar e nos deixar no meio do caminho...

Como era bom perambular por aí, chupar fruto verde e azedo na estrada de cascalho que dava para a barragem do distrito de São José... como era bom passar pelas casas de farinha da Quixaba e da Queimada, ver aquele povo rico de histórias e de coração a olhar o sossego do mundo das janelas de suas casas... como era bom desbravar o Mulungú e pedir água de pote de barro para matar nossa sede de novidade.

Ah, como era bom e eu não sabia!

Hoje, do jeito que estou, na idade que carrego, só há uma coisa que me deixa feliz como nos tempos de antanho. É saber que a gente nunca pára de sonhar, e saber que a gente pode ser tudo o que imagina, tudo aquilo que a gente sonha ou que um dia já desejamos ser ou fazer. Acho que é por isso que estou vivo até hoje, porque posso ser aquilo que sempre sonhei ser um dia, mesmo que esse sonho tenha sido o de abarcar todas as cores e dores do mundo numa folha de papel em branco, armado de uma esferográfica de ponta fina qualquer, como um dia sonhei quando eu era apenas um menino brincando de brincar pelas ruas de Iraquara...


Notas.
1 – Vila pertencente ao município de Iraquara.